PUBLICIDADE

"Infiel" expõe o pesadelo da separação

Por Agencia Estado
Atualização:

Desejo e culpa são os termos de medida adequados para Infiel, filme de Liv Ullmann que estréia amanhã em São Paulo. Nem poderia ser de outra forma, pois o autor do roteiro é ninguém menos que Ingmar Bergman. O mitológico Bergman, que isolado em sua ilha de Farö, no litoral sueco, rumina justamente suas culpas e desejos e os destila em roteiros mais que perfeitos. O de Infiel ele enviou, como presente, à ex-mulher e ex-musa Liv Ullmann, protagonista de nove dos seus magníficos filmes. O que se vê neste, que é o terceiro longa-metragem de Liv? Um velho artista, o próprio Bergman, interpretado por Erland Josephson (o mesmo de Cenas de um Casamento), em sua ilha, cercado de recordações, tentando dar forma, ou exorcizar, seus fantasmas. Um deles, o mais persistente, o mais querido e constante, atende pelo nome de Marianne Vogler (Lena Endre). Ela conta ao velho mestre os detalhes da sua história conjugal. Casada com um maestro famoso, Markus (Thomas Hanzon), tem uma filha de 9 anos, e se apaixona pelo amigo da família, David (Kirster Henriksson). As primeiras cenas são precedidas de um texto, uma epígrafe que afirma ser a separação conjugal uma das piores provações que um ser humano pode passar. O que se vê na seqüência da história (que vai sendo contada ou rememorada por Bergman) é como uma demonstração matemática dessa tese. Nos primeiros encontros, o casal de amantes é atormentado pela culpa. Dor e prazer em doses equilibradas fazem as três semanas de romance em Paris. Depois, as cenas constrangedoras quando o marido descobre tudo. A separação, os advogados, os assistentes sociais, a luta renhida pela guarda de Isabelle, a criança. As crueldades, as chantagens, a esgrima moral, em que adversários que se conhecem muito bem, pois se amavam até a véspera, buscam sempre tocar os pontos mais fracos e sensíveis do outro. Enfim, dor, dor e mais dor. Dificilmente, no cinema, já se viram personagens tão completamente desamparados em seu mal-estar existencial. Onde o prazer sem culpa, onde a fruição da existência, onde o gozo dos sentidos, sem atenção para com uma alma que pensa e faz cobranças? Para os personagens de Bergman (ou seja, para o próprio Bergman) não há desejo sem um grande, imenso preço a pagar. O ser humano, feliz com a realidade animal do seu sexo, não tem vez nesse universo. Nele, ninguém é de todo mau. Ou conscientemente mau. Ferem-se por fraqueza. Se a destruição mútua é inexorável é porque todos, sem exceção, se mostram reféns de impulsos contraditórios, que não compreendem e muito menos dominam. O que há de fascinante em Infiel é tanto a crueza da sua concepção de fundo quanto a sutileza de sua armação dramática. Pois há bem uma dramaturgia, e na verdade uma grande dramaturgia, nessa trama conjugal explicitamente auto-referente e biográfica. Bergman por ele mesmo, um velho sábio, dotado de tão pouca sabedoria quanto aquele Isaac Borg que ele imortalizou em Morangos Silvestres, quando ainda era jovem. Há, em Infiel, a biografia de Bergman, seus problemas com as mulheres, sua atitude dúbia diante da traição conjugal. E há, também, o reflexo de sua obra, que, por sua vez, se referencia à sua vida. Tudo está interligado. Então, o velho artista em Farö é Bergman, mas também Isaac Borg. O quarto de hotel parisiense, onde Marianne e David se amam e se odeiam, evoca aquele vermelho de Gritos e Sussurros, a câmara ardente de alguém que morreu, mas não pode partir. Amor e morte. Marianne é um personagem de ficção, e também a própria cineasta, Liv, que ama e venera o mestre, mas não pôde continuar casada com ele. Há muito de teatro nesse filme, pois afinal este é o mundo de Bergman. Ao teatro ele voltou depois de se sentir sem condições físicas para continuar dirigindo cinema. O fim de seu último filme, Fanny e Alexander, prega uma volta ao teatro, sinônimo de volta à alegria, à vida, talvez à felicidade. A felicidade como tarefa, sempre buscada e nunca lograda por Bergman. E se Infiel é teatro, porque é texto, paixão e inteligência, deve tudo também aos seus intérpretes. Nada seria sem uma atriz tão sensível quanto Lena Endre ou tão completo como Erland Josephson. Erland é um fenômeno de interpretação. Diz tudo com a sutileza de um olhar, de um vinco na testa, um alçar de sobrancelhas. Toda a dor do mundo, toda a expressividade de um ser dilacerado passam por esse rosto esculpido não por um sistema escolar de interpretação, mas pela compreensão profunda do seu destino trágico. Infiel - (Trolösa). Drama. Direção de Liv Ullmann. Sué-It-Ale/2000. Duração:155 minutos.

Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.