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Indicado para 4 Oscars, 'A Garota Dinamarquesa' fala de mudança de sexo

Eddie Redmayne briga pelo Oscar de melhor ator

Foto do author Luiz Zanin Oricchio
Por Luiz Zanin Oricchio
Atualização:

Um dia, a pintora Gerda Wegener faz um pedido ao marido, o também artista plástico Einar Wegener. Como a modelo que estava posando para Gerda havia faltado ao encontro, ela gostaria que Einar vestisse as roupas femininas para substituí-la durante a sessão de pintura. Dessa forma, ela poderia continuar o trabalho e a encomenda não atrasaria. Einar topa a parada e, desde esse pequeno fato, algo muda em suas vidas. E de maneira radical. Einar passa a se sentir fascinado pelas roupas da mulher, até desenvolver o que seria uma nova personalidade feminina, que batiza com o nome de Lili.

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A história é verídica, envolve o casal de artistas plásticos dinamarqueses Gerda e Einar Wegener, tem início na Copenhague dos anos 1920. É tema do filme A Garota Dinamarquesa, de Tom Hopper, com quatro indicações para o Oscar: Eddie Redmanyne, como Einar, para melhor ator, Alicia Vikander como Gerda, para atriz coadjuvante, além de figurino e design de produção.

A Garota Dinamarquesa tem despertado interesse, pois fala de um dos primeiros casos conhecidos de cirurgia para mudança de sexo em um transgênero. Mas nem tudo é unanimidade. Se você pesquisar na internet, verá que também não está isento de polêmicas. Baseado no livro homônimo de David Ebershoff, o filme vem sendo acusado de romantizar e adocicar a história original, que teria sido muito mais dura para seus protagonistas do que a versão colocada na tela por Tom Hopper. Além disso, grupos LGBT se queixam de que uma pessoa transgênero, como Einar/Lili, tenha sido interpretada por um ator cisgênero. O neologismo designa pessoas que se reconhecem como pertencendo ao gênero que foi designado ao nascer.

Pode-se prever que, em nosso tempo, um filme como A Garota Dinamarquesa vá sempre desagradar alguns setores da sociedade. Seja o dos moralistas de sempre, que, em pleno século 21 não aceitam mudanças de comportamento, seja o de grupos que se sentem mal representados na obra. Não há o que fazer, mesmo porque tanto o filme como o livro no qual se baseia se apresentam como obras de ficção, gozando de relativa autonomia em relação à “verdade histórica” dos fatos narrados e dos personagens descritos. 

Deixando-se de lado essas questões e olhando-se apenas para o filme, conclui-se que ele tem méritos. É elegante e terno ao colocar a trajetória dos personagens sob uma aura romântica. Às vezes, é verdade, até meio adocicada. Refere-se a uma época em que a tolerância social em relação a questões de gênero parecia muito menor do que na nossa. De modo que, quando Einar Wegener decide fazer a sua transição completa para Lili Elbe, enfrenta muitas dificuldades e incompreensões. Esbarra também numa fase em que a medicina, nesta e em outras áreas, se encontra bem menos desenvolvida do que hoje. 

Neste ponto, A Garota Dinamarquesa é até mesmo convencional e previsível ao relatar o caso clássico do indivíduo contra a mentalidade da sociedade da sua época. Mas, por repetido que seja esse esquema, sempre o acompanhamos com interesse. Primeiro, porque de fato pioneiros em qualquer área sempre sofrem ao lutar contra forças obstinadas em impedir mudanças. Segundo, porque o cinema nos leva sempre a simpatizar e nos identificar com aquele que luta solitário contra uma estrutura muito mais forte e poderosa do que ele. Gostamos dos perdedores e ninguém, em são consciência, ama o vencedor de sempre, o estado conservador das coisas. Mesmo porque, com suas derrotas, os perdedores contribuem para mudar o mundo e, por isso, à luz da história, são os verdadeiros vencedores. 

Mas há outro ponto bastante interessante em A Garota Dinamarquesa - a relação de Gerda com Einar e, depois, com Lili. Nesse ponto a história toma outro peso e outra direção. Se Lili precisa lutar com incompreensões fora de casa, terá em Gerda uma figura solidária, apesar do inusitado do casamento que se transmuda para amizade e parceria. Um fato que se tende a pensar como bastante raro, ainda mais levando em conta a época em que se deu, a Europa dos anos 1920 e 1930. Mas aí talvez haja um preconceito da nossa parte, achar que a humanidade progride em linha reta e as sociedades caminham sempre para uma maior abertura. Se é verdade que a questão de gênero hoje é vista com mais naturalidade, não se pode esquecer que na Europa dos anos 1920 as ideias de Freud e de outros pensadores da sexualidade já estavam consolidadas e divulgadas. A própria medicina se havia sensibilizado para atuar de forma menos rígida, tanto assim que Lili encontra um médico disposto a ajudá-la. No século passado, talvez apenas a década de 1960 possa rivalizar com a de 1920 em termos de ideias ousadas. 

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Há também o relacionamento artístico entre Gerda e Lili. Einar, antes de se tornar Lili, era um pintor de paisagens. Gerda pintava figuras humanas. Ambos lutavam para se afirmar no mercado das artes. Quando passa a pintar Lili, sua carreira decola. Encontra no ex-marido, agora transformado em Lili, sua modelo preferencial e exclusiva. As telas passam a vender, ela expõe em Paris e outras capitais, enfim percorrendo os caminhos de uma trajetória artística vitoriosa. 

Nesse ponto, o filme atinge seu maior interesse, no aproveitamento artístico de uma imagem feminina construída, como a de Lili a partir de Einar. Como se a obra, na verdade, não fosse de Gerda, que apenas a registra, mas de Lili, ao construir-se a si própria. Nesse ponto, é impossível não se lembrar de Simone de Beauvoir - “Ninguém nasce mulher - torna-se mulher.”  Dito isso, é preciso notar que, se fala em um processo de liberação pessoal, A Garota Dinamarquesa é um filme conservador do ponto de vista estético. Quer dizer, entra, em sua linguagem cinematográfica, em contradição com seu tema. A maneira como é construído o leva a uma atenuação do conflito que está em sua gênese. E a falta de radicalidade não condiz com o temperamento corajoso de seus protagonistas. 

Não é ruim. Mas, ao contrário de Lili, que ousou e enfrentou barreiras para se reencontrar, o filme que descreve essa luta se conforma à norma e ao bom comportamento. 

Livro é inspirado em diários da personagem

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Em uma nota preliminar, o escritor norte-americano David Ebershoff diz que A Garota Dinamarquesa (Fábrica 231) “é uma obra de ficção inspirada na história de Lili Elbe e sua esposa, Gerda”. Ou seja, assume ter romanceado um caso real, aquele que é considerado um dos primeiros de uma cirurgia de afirmação de gênero, como hoje se diz, em que Einar Wegener se converte em Lili Elbe. 

Ebershoff baseou-se nos diários e correspondência de Lili, editados em 1933 por Niels Hoyer após a morte da autora, sob o título de Man Into Woman. Mas Ebershoff admite que mesmo esse material de primeira mão foi retrabalhado por Hoyer até se converter numa “biografia híbrida, semificcional”. Difícil, portanto, escavar a “verdade” absoluta dos fatos, ainda mais em terreno tão movediço, íntimo e cercado de silêncios, julgamentos morais e preconceitos. Dessa forma, sentiu-se livre para, com o material disponível, fabular e ficcionalizar, fazendo de A Garota Dinamarquesa um romance apenas inspirado em vidas reais. Quer dizer, uma peça de invenção, destinada a interpretar essas vidas longínquas no tempo e torná-las contemporâneas do público atual. 

Dessa forma, Ebershoff se vale de alguns expedientes que são omitidos no filme. Por exemplo, evocar a infância dos personagens, a de Gerda, na Califórnia, a de Einar/Lili na própria Dinamarca, filho de família pobre, cujo pai era sitiante. 

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Mas, de qualquer forma, o livro abre de forma direta com a cena, digamos assim, primordial, na qual Gerda pede ao marido Einar para que vista as peças femininas e pose para ela. O livro tem bom texto e linguagem envolvente.  

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