Improviso marca abertura do Cine Ceará

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Por Agencia Estado
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Tem alguma coisa pior do que um festival de cinema começar com uma projeção em vídeo? Tem, quando a projeção em vídeo emperra no fim. Foi o que aconteceu na sexta-feira, noite de abertura do Cine Ceará, com a exibição de Juazeiro, a Nova Jerusalém, do diretor cearense Rosemberg Cariry. Rosemberg pediu indulgências prévias à platéia. Seu filme fora inicialmente programado para encerrar o festival, quando teria sido concluído o processo de copiagem em 35 milímetros (a noite de encerramento será preenchida pela projeção fora de concurso de Memórias Póstumas, longa-metragem do paulista André Klotzel, baseado em Machado de Assis). Cariry evitou criticar diretamente a organização do festival e pediu que a platéia tivesse paciência com a projeção. Pedido não atendido por parte do público que, pouco discretamente, abandonou antes do fim da sessão as dependências do Cine São Luiz. Juazeiro, a Nova Jerusalém é um projeto que vem sendo desenvolvido desde 1989. Registra imagens em todos os suportes possíveis, da película em 16 ou 35 milímetros ao vídeo. O diretor fez como era possível para realizar seu mergulho na mística da região do Cariri. É filho da terra e adotou o topônimo como sobrenome artístico. Rosemberg quer estrear o filme na França, mas antes, exibi-lo em outros festivais brasileiros. O espectador de Juazeiro verá imagens conhecidas das beatas e romeiros devotos de padre Cícero, mas também imagens trabalhadas com sofisticação, intercaladas ao registro documental, tudo comentado por versos de cantadores célebres, como Cego Oliveira. "Na verdade, é como uma ópera popular", diz Rosemberg, lamentando a exibição com imagem indefinida e som precário. Segundo o cineasta, seu objetivo foi "ver através dos olhos daqueles romeiros; melhor: ver pelos olhos da minha avó, uma retirante da grande seca de 1915" - flagelo descrito por Rachel de Queiroz em seu romance de estréia. Quer dizer, Rosemberg procurou reincorporar-se às imagens da infância, despir-se de um olhar distante e preconceituoso em relação aos fenômenos da religiosidade popular. Não considera Juazeiro um filme sobre a religião, mas um ensaio sobre o Brasil. "Quis voltar a ouvir aquela interpretação de mundo particular, sem as estruturas mentais, que poderiam ser marxistas ou cartesianas, mas essa volta só poderia se fazer pela sensibilidade", disse. Interessa-lhe detectar o que há de universal e original nessa utopia surgida no Vale do Cariri, região fértil em meio ao sertão. Uma utopia messiânica, consolidada nas figuras de padre Cícero Romão e da beata Maria Araújo, protagonista de um suposto milagre, em Juazeiro, quando uma hóstia teria se transformado em sangue em sua boca. O padre carismático e o milagre assinalam Juazeiro como a terra da promissão. "Renasce aqui uma das utopias da abundância, como as do País de São Saruê e da Cocagne francesa." O sonho do mundo sem necessidade, regado a leite e mel, e que surge invariavelmente na imaginação dos desvalidos. Por isso, afirma Rosemberg, em Juazeiro não existe uma cultura da miséria -- mas uma cultura de resistência à miséria. Restaria voltar a alguns pontos discutíveis, como a aceitação acrítica da visão popular sobre a mais que controversa figura do padre Cícero. Ou a tese da religião como amálgama de elementos culturais próprios e, portanto, portadora de um valor positivo em si. Nem sempre o mito - seja ele o de Cícero, do Conselheiro ou da beata - tem valor de transformação, o que por vezes se insinua na obra. Mas, essa seria outra discussão, que pode ser adiada para quando o filme for visto em condições melhores.

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