Fernando Meirelles tinha pouco mais de uma dezena de entrevistas agendadas, mais exatamente 14. Era o número de jornalistas que queriam falar com o diretor de Cidade de Deus quando houve a primeira exibição do filme. Depois que Cidade de Deus estourou, ganhou montes de elogios e foi coberto de estrela nos quadros de cotações do 55.º Festival de Cannes - só a revista francesa Première deu bola preta -, os pedidos de entrevista multiplicaram-se e bateram nos cem. Meirelles não pára de receber jornalistas e críticos de todo o mundo. Dá entrevistas em inglês, em francês, até em português. Queixa-se, mas sem querer comprar brigas, da imprensa brasileira. "São os que mais querem ver os defeitos do filme." Katia Lund, que tem crédito de co-direção em Cidade de Deus por seu trabalho com os atores, arrisca uma interpretação. " Brasileiro tem complexo de Terceiro Mundo; não pode ver alguém do País fazer sucesso que quer logo destruir." Cidade de Deus virou a menina-dos-olhos da Miramax, que distribui o filme de Meirelles nos EUA e no restante do mundo. Foi considerado aqui tarantinesco. "Não tem nada a ver", garante o diretor, que também se surpreende com a comparação que muita gente está fazendo entre seu filme e Amores Brutos, do mexicano Alejandro González-Iñarritu. Katia também descarta a aproximação de Quentin Tarantino, embora admita gostar bastante de Cães de Aluguel. Ambos, Meirelles e ela, fizeram Cidade de Deus para colocar na tela o apartheid social que divide o Brasil, não para que os espectdores esbaldem o id com explosões de violência no escurinho do cinema. O repórter pergunta a título de provocação: Meirelles e Katia acreditam que a repercussão do filme poderá mudar alguma coisa, no sentido de elimiinar esse abismo social que dilacera o País? Em síntese, o cinema pode mudar o mundo? Um filme como Cidade de Deus pode mudar a vida das pessoas na favela? Kátia responde: "Fale por você mesmo; você acha que é a mesma pessoa ou consegue ser tocado para melhor, pelos filmes, peças ou livros que vê ou lê? É uma contribuição pequena, uma gota d´água, mas o cinema pode contribuir para a formação da consciência das pessoas." O filme, que descreve a trajetória de um grupo de jovens na favela Cidade de Deus, foi considerado maniqueísta por muita gente do Brasil, principalmente. Haveria uma simplificação da ética dos personagens. Buscapé, o protagonista que virá fotógrafo, é do bem. Zé Pequeno, seu oponente, é do mal. Meirelles reconhece que Buscapé é Paulo Lins, que escreveu o livro, e, desta maneira, conseguiu escapar ao ciclo de violência de que trata o filme. Mas nega que Zé Pequeno seja um estereótipo. "O verdadeiro Zé é reconhecido até hoje, 30 anos depois, como uma praga pelo pessoal da Cidade de Deus. Tentamos de muitas maneiras humanizá-lo para evitar justamente a simplificação." O "nós" são ele e o roteirista Braulio Mantovani, que fez trabalho muito criativo de construlção da narrativa e dos personagens, estabelecendo os elos que ligam as diferentes histórias. Mas pouca gente se intessa em falar com Meirelles e Kátia sobre a construção dramática de Cidade de Deus. O que os estrangeiros chegam e perguntam é sobre a verdadeira guerra civil não declarada que se trava hoje no Brasil. Querem saber se a situação é mesmo tão explosiva quanto mostra o filme aqui em Cannes. Essa força é indiscutível que Cidade de Deus tem. Meirelles a credita em boa parte ao trabalho dos atores que foram preparados por Kátia e por Fátima Toledo. "Eles são a verdadeira alma desse filme", diz o diretor. São garotos da favela, alguns com experiência de teatro amador. São eles que põem a cara do Brasil na tela. Meirelles estava preocupado, antes de vir para Cannes. Achava que o filme poderia não ser compreendido. Temia decepcionar os seus garotos. Não é paternalismo. Ele sabe que os meninos têm talento. Espera que os brasileiros tenham disposição para descobrir isso, quando Cidade de Deus estrear em agosto.