Imamura e seu cinema de fluidos

Novo filme de Shohei Imamura, Água Quente sob uma Ponte Vermelha estréia no Brasil contando a história de uma mulher que jorra água como um gêiser quando tem orgasmos

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Por Agencia Estado
Atualização:

Shohei Imamura escreveu o roteiro de Água Quente sob uma Ponte Vermelha com seu filho. Confessa que teve dificuldades. Não fica bem um pai ficar tratando desses assuntos com o filho. Entre "esses assuntos" está o orgasmo feminino. É um dos temas, e até o mais óbvio, de filme que estréia. É a história de uma mulher que transborda e jorra água como um gêiser quando sente prazer sexual. Imamura, de 76 anos, é um velho divertido. É também um mestre, que atingiu, com a idade, a extrema depuração do seu estilo. Faz filmes simples, mas de uma simplicidade enganosa. Há muitas camadas de leitura possível em Água Quente. Para testar quanto Imamura é divertido, basta contar uma historinha. O cineasta queria que jorrasse da mulher um gêiser de cem metros de altura. Mas ele não filmou em Tóquio. Na cidade que foi o set de filmagem, os bombeiros puderam providenciar um jorro de água de ´apenas´ 30 metros. Imamura contou essas coisas e, antes dele, seu filho também falou sobre o assunto na revista francesa Positif. ´Contou´ talvez seja um tanto exagerado, como sabe qualquer pessoa que algum dia tenha cruzado com o diretor japonês. Imamura fala muito mais por meio de seus silêncios do que pelas raras palavras que emite. Vale contar outra história. Quando o clássico O Império dos Sentidos, de Nagisa Oshima, foi lançado no Japão, o filme sofreu muitos cortes porque a censura japonesa não permite a exibição de nu frontal nem de cenas de penetração. Imamura não é Oshima, mas também está falando de sexo. Só que ele não teve problema algum porque seu método, embora não tenha sido formulado para driblar a censura, na verdade escapa a toda tentativa de classificação dos censores. Água Quente tem orgasmo, masturbação, mas nada disso é mostrado claramente ou se é não causa desconforto ou mal-estar nem no mais puritano dos espectadores. O que sobressai é o frescor da narrativa, a sua criatividade, o seu humor. Na história, o ator-fetiche do diretor, Koji Yakusho - que fez com ele A Enguia, vencedor da Palma de Ouro, a segunda do autor, após A Balada de Narayama - é abandonado pela mulher e pelo filho e vai parar nessa cidadezinha litorânea onde vira o homem-objeto que satisfaz as necessidades de transbordamento da protagonista feminina. Ela é Misa Shimizu, outra atriz conhecida dos filmes do diretor. Essa é uma história, mas existem outras. Há a da avó e seu relacionamento amoroso com um filósofo epicurista e da própria protagonista com um pescador. Articulam-se num tecido amplo e complexo como a vida. O filho de Imamura gosta de definir seu pai como um autor ´realista´. Positif, com astúcia, prefere considerá-lo um elementar - recorrendo à classificação de Gaston Bachelard, o filósofo que construiu sua obra em torno de dois eixos de interesse, a ciência e a arte, misturando racionalismo e empirismo para investigar o homem como indivíduo e ser social. Bachelard usava muito a imagem mítica da fênix, o pássaro de fogo. Imamura prefere outro dos quatro elementos - a água. Ela tem estado presente no seu cinema desde os primeiros filmes, por volta de 1960. Imamura pertence à nouvelle vague japonesa. Causou impacto com Todos Porcos, seu filme sobre gangues que se defrontam para recolher os restos de comida servidos a bordo dos cruzadores, para com eles alimentar as criações de suínos. A água já aparece aí, ao fundo. Está na essência de A Enguia e, agora, de Água Quente sob uma Ponte Vermelha. Não é só a água, mas todo universo líqüido que atrai o diretor com sua fluidez. Imamura já vinha ensaiando em seu cinema - em filmes como A Evaporação do Homem e História do Japão do Pós-Guerra Contada por uma Garçonete - a idéia de ser o autor dos fluidos humanos. Yosuke, o protagonista de Água Quente, pode até pensar que a vida acabou para ele. Mas a vida vem, eterno recomeço. Jorra do meio das pernas de Saeko e, transbordando para o rio, atrai os peixes e favorece a pescaria. A água, sempre em movimento, expressão da fluidez, representa a vitalidade reencontrada de Yosuke nesse belo (e humorado) clássico moderno sobre o amor, o sexo, a vida enfim. Água Quente sob uma Ponte Vermelha - (Akai Hashi Noshitano Nuri Mizu). Comédia dramática. Direção de Shohei Imamura. Jap-Fr/2001. Duração: 119 minutos. 18 anos

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