<i>Inferno</i> coloca impasse do homem entre o acaso e o destino

O cineasta Danis Tanovic filma o roteiro deixado pelo polonês Krysztof Kieslowski

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Por Agencia Estado
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Uma pequena cena da natureza abre Inferno. Uma ave, um cuco fêmea, põe seu ovo no ninho alheio. Para que a fêmea dona do ninho não perceba, devora um dos ovos ali presentes. Quando o filhote de cuco sai da casca, empurra os outros para fora, para ser o único alimentado pela mãe hospedeira. O ninho fica próximo a uma prisão, de onde sai um homem após cumprir sua pena. Saberemos apenas no fim do filme quem é ele e que papel desempenha na trama. Quem aparece, em histórias separadas, mas unidas por um fio invisível, são três mulheres, Sophie, Céline e Anne (Emmanuelle Béart, Karin Viard e Marie Gillain). Cada uma delas atravessa um drama em sua existência. E, veremos, esses dramas estão subordinados a uma contingência comum. Estranho e instigante O filme é estranho e instigante. Mexe com alguns dilemas básicos da condição humana, como seu horror ao acaso e ao destino, igualmente. Não podemos suportar a idéia de que tudo esteja determinado e também não agüentamos pensar que somos frutos de acontecimentos aleatórios. O homem é um impasse. Inferno, de Danis Tanovic, faz parte da trilogia concebida pelo diretor polonês Krzysztof Kieslowski e seu co-roteirista Krzysztof Piesiewicz sobre a tríade cristã Paraíso, Purgatório, Inferno, tríade também da obra-prima de Dante Alighieri. Kieslowski não teve tempo de filmá-la. Morreu em 1996 e deixou o projeto inconcluso. Em 2001, o alemão Tom Tykwer (de Corra, Lola, Corra) filmou Paraíso. O bósnio Tanovic (de Terra de Ninguém) resolveu encarar o Inferno. Fica faltando o Purgatório. Kieslowski, sabe-se, raciocinava por séries. Fez, para a televisão polonesa, a série Decálogo, comentando os preceitos da lei cristã. Em seguida partiu para as "cores" da Revolução Francesa. Bleu, blanc, rouge: A Liberdade É Azul, A Igualdade É Branca, A Fraternidade É Vermelha. Um filme não é apenas seu roteiro, o que é óbvio, mas deve ser lembrado. Falta então, a Inferno, o "toque" kieslowskiano. Aquela intensidade estranha, que nos fazia perceber como temas aparentemente filosóficos e distantes - como o acaso e a necessidade, por exemplo - não apenas faziam parte do nosso cotidiano, como davam à nossa própria vida um caráter dramático, quando não trágico. Como conseguia esse efeito? Difícil dizer, mas era algo que tinha a ver com a interiorização dos personagens, com uma certa luz, uma determinada duração dos planos, a montagem, a música de Zbignew Preisner, enfim, um conjunto de fatores. ´Inferno em nós mesmos´ Tanovic parece um pouco mais artificial, talvez um tanto mais raso, sem que esse termo seja usado de maneira ofensiva. É que a meditação de Kieslowski tinha a profundidade da dor, de alguém que já se sentia talvez próximo do outro lado, de algum tipo de fronteira existencial para a qual não havia retorno. Era como uma resignação exasperada que não se sente em Tanovic. Ainda assim, Inferno parece um filme nada negligenciável. Inclusive pela dificuldade que propõe ao espectador. A sua própria armação de trama já propõe essa complexidade, pois é da vida e de destinos dilacerados que se está tratando. Em aparência, o que temos? Três mulheres vivendo relacionamentos difíceis com seus homens. O que o filme propõe? Que esses relacionamentos poderiam ser mais sadios, desde que elas tivessem consciência do drama oculto que pesa sobre elas? Ora, essa me parece uma visão limitada do assunto. Tanovic andou dando entrevistas nas quais dizia que Sartre estava errado ao dizer que o inferno era os outros. "O inferno está em nós mesmos", sustenta. Ora, se o filme diz alguma coisa é que o inferno é construído entre nós e os outros. Quer dizer, na relação. Era como ensinava Kieslowski, um católico que não acreditava em redenção. Inferno (L?Enfer, Fr-It-Bél-Jap/2005, 95 min.) - Drama. Dir. Danis Tanovic. 14 anos. Cotação: Bom

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