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<i>Dias Selvagens</i>, um Kar-wai nostálgico e muito sensual

Longa é o segundo do diretor, feito em 1991 e até agora inédito no Brasil

Por Agencia Estado
Atualização:

O freqüentador do circuito de arte já se acostumou há muito com o estilo de Wong Kar-wai, diretor de Amor à Flor da Pele e Felizes Juntos. Pois bem, com o lançamento tardio de seu segundo longa, Dias Selvagens, de 1991, salta à vista que seu modo de conceber o cinema já estava presente, e sendo processado, desde o início da carreira. Temos aqui os longos (e às vezes lânguidos) planos, que parecem abraçar amorosamente os personagens, desenhando com a câmera os corpos femininos. Temos a inclusão de música que soa nostálgica, rumbas e boleros dos anos 40 e 50, numa ação que se passa durante a década de 1960. Aliás, em termos de trilha sonora, o aficionado brasileiro vai se deparar, logo no plano de abertura, com os violões inconfundíveis de uma dupla famosa (e hoje esquecida), Os Índios Tabajaras. Virtuoses do instrumento, os índios desceram do Ceará ao Rio, fizeram sucesso imediato e acabaram indo embora para os Estados Unidos onde, consta-se, ainda vivem. Celebrizaram-se pela interpretação de música erudita mas também de canções mexicanas e cubanas de grande sucesso. E é uma delas, Siempre em Mi Corazón, de Ernesto Lecuona, que Kar-wai usa na abertura e no encerramento do seu filme. A história fala de Yuddy (Leslie Cheung, de Minha Querida Concubina e Felizes juntos), um rapaz à deriva, criado por uma prostituta e que não conhece sua verdadeira mãe. Alguém em busca de amor e incapaz de se fixar em uma mulher? Sim, mas também em busca de uma identidade, carência facilmente localizável aqui na ignorância da sua origem biológica. Assim, ele fica entre duas mulheres Li-zhen (Maggie Cheung) e Mimi (Carina Lau), sem de fato se apegar a nenhuma. Não há nada de muito extraordinário na história, e no entanto ela nos prende e comove. Por quê? Bem, esse é um dos mistérios do cinema e às vezes ele é chamado de ´química´. Os filmes de Kar-wai em geral têm essa qualidade. Quem não se lembra de Maggie Cheung, com um vestido colado, subindo uma escadaria em Amor à Flor da Pele, filmada em ligeiro slow motion? Há esse tônus em seus filmes, como se as cenas se passassem em uma realidade um tanto distante, adocicada, exótica, como filtrada pelos vapores de ópio ou alguma coisa do tipo. É a maneira de colocar a câmera, de iluminar os corpos, de desnudá-los ou simplesmente cobri-los de música. De qualquer forma, esse tratamento visual acompanha Kar-wai ao longo de seu desenvolvimento como cineasta. Pode-se gostar ou não de seus filmes - essa é uma outra história e depende das preferências de cada um. Mas o que não se pode negar são suas qualidades. Por exemplo, Kar-wai não busca nunca imagens banais, clichês visuais. Cada uma delas é quente, plena de significado e resultado de um exercício de cinematografia que nunca parece estéril. Há seqüências assim, com aquela em que a dupla de amigos Yuddi e Zeb entram em um cabaré suspeito onde se produzirá uma briga monumental. A câmera acompanha a subida pela escada, devassando o ambiente pelo seu revés, à medida que avança. Lembra muito um plano-seqüência - este ainda mais impressionante - de Martin Scorsese em Os Bons Companheiros, quando se entra em um restaurante de luxo pela parte de trás, passando pela cozinha. É uma maneira de filmar interessante, que pouco se parece de fato com o cinema chinês, visualmente mais suntuoso e austero, pelo menos se pensarmos nos trabalhos de Chen Kaige e Zhang Yimou, membros da chamada 5.ª geração. O próprio Kar-wai nasceu em Xangai mas foi pequeno para Hong Kong. Teve outras influências. Diz que nunca freqüentou escolas de cinema e elege, como principal referência literária, um argentino, o Manuel Puig de Buenos Aires Affair. Talvez essa trivia relativa a Kar-wai explique a tonalidade tão latina de seus filmes, cálidos, românticos, mas de um romantismo desbragado, de bolero, uma insistência temática nos males de amor que não se resolvem, na impossibilidade do encontro amoroso completo. E também na impossibilidade dos personagens de deixar de desejar essa completude. Um belo cinema. Dias Selvagens (Days of Being Wild, Hong Kong/1991, 85 min.) - Drama. Dir. Wong Kar-wai. 14 anos. HSBC Belas Artes 1 - 16 h, 17h50, 19h40, 21h30. Cotação: Bom

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