<i>300</i>, a História por trás do filme e dos quadrinhos

Episódio retratado na tela e na HQ foi resultado de um longo processo de expansão, do século 4.º ao 5.º a.C., no qual o choque entre gregos e persas era inevitável

PUBLICIDADE

Por Agencia Estado
Atualização:

Muita discussão tem surgido em torno do lançamento do filme 300. Baseado na obra em quadrinhos 300 de Esparta de Frank Miller, o filme e a HQ narram uma batalha entre persas e espartanos em algum ponto longínquo da história da Grécia. O que pouco se falou é que o episódio foi resultado de um longo processo de expansão que foi do século 4.º ao 5.º a.C.. Num período em que as primeiras organizações políticas fincavam suas bases (mesmo que sumariamente) e os governos se tornavam mais centralizados, o choque entre gregos e persas era inevitável. O mote central do gibi é o sacrifício dos 300 soldados espartanos contra a invasão do Império Persa, numericamente muito maior, na batalha das Termópilas em 480 a.C.. Leônidas é o heróico rei espartano e rival do arrogante Xerxes com seus milhares de seguidores. Na realidade, a investida de Xerxes foi a segunda tentativa de invasão feita pelos persas. A primeira delas foi feita por seu pai, Dario, expulso pelos gregos atenienses na batalha de Maratona dez anos antes dando início às chamadas Guerras Médicas. Os 42 quilômetros que hoje se convém chamar de "maratona" foi a distância percorrida por Fidípides, emissário do general Milcíades, entre as cidades de Maratona e Atenas para anunciar a vitória grega. A invasão se justificava na medida em que as cidades-Estado gregas expandiam suas colônias para além de seu território natal, alcançando o outro lado do mar Egeu, especialmente na Frígia e Lídia (atual Turquia). O Império Persa, fundado por Ciro no século 6.º a.C., era um vasto território que ia, pelo leste, desde a Índia, passando pelos atuais Paquistão e Afeganistão, até chegar ao Irã, coração do seu governo. À oeste, alcançava a Fenícia (atual Israel, Líbia, Jordânia e Síria), o Egito, além de partes da Lídia e Frígia, exatamente as regiões cobiçadas pelos gregos devido à sua boa localização como rota comercial. Depois da tentativa frustrada de Dario, Xerxes teria passado dez anos preparando a nova investida. Vinho e azeite O império de Xerxes era, de fato, de uma vastidão pouco vista antes ou depois. Na HQ pouco se entende sobre os motivos da guerra além da ambição de um rei que acredita ser um deus contra um povo "pacífico" que apenas deseja liberdade em sua própria terra. A rigor, a Lídia e a Frígia eram ricas colônias que complementavam a produção de vinho e azeite da Grécia. O interesse das duas nações não era casual. Mesmo o historiador Heródoto (485-420 a.C.), principal referência ao estudar as Guerras Médicas, nasceu em Helicarnasso, na Lídia. Para todos os efeitos Heródoto era um grego, porém, sua educação foi bastante influenciada pela cultura persa. Sobretudo, estimulava o respeito por outros povos e culturas, para o Império Persa, algo essencial para sua coesão. Nesse sentido a HQ contraria aquilo que está mais próximo de ser um "relato oficial" da batalha das Termópilas. Apesar de ser um grego claramente patriótico, em nenhum momento Heródoto dá a entender que os persas eram um povo cruel, disposto a erradicar seus inimigos. Pelo contrário, fica claro que o espírito da dominação persa era de integração e assimilação. Esparta e Atenas O paradoxo "respeito/patriotismo" de Heródoto se explica na tradição cultural grega que via a guerra como um evento terrível, mas necessário. Para os gregos, especialmente os espartanos, a invasão de terras era uma ofensa grave e não havia nada mais legítimo que pegar em armas para defendê-las. Em tempos de paz Esparta se fechava em seu próprio universo, antigas tradições e crenças, especialmente no que se refere ao aperfeiçoamento físico e à atividade militar. Diferentemente de Atenas, bem mais cosmopolita, Esparta via a democracia com certo desdém, um caminho fácil para a corrupção. Em seu lugar exultavam as leis de Licurgo, bem indicadas por Frank Miller, que optavam antes pelo sacrifício do que pela derrota ou submissão. Austeros, os espartanos estavam mais sensíveis a uma violação de seus costumes do que outras polis gregas. No início da HQ, quando um emissário persa chega à Esparta e exige que o rei Leônidas lhe ceda amostras de água e terras (símbolos da submissão ao rei Xerxes), a agressão fica estabelecida. O próprio fato de um estrangeiro pisar em terras espartanas já era algo incômodo. A resposta foi violenta. É claro, dizer que a Batalha das Termópilas começou por uma picuinha pessoal de Leônidas contra Xerxes é o mesmo que dizer que a guerra de Tróia começou pela disputa de Menelau e Páris por Helena. Ou seja, é uma lenda que corrobora o fato. Nesse sentido a HQ cumpre bem sua função. O objetivo seria dar dramaticidade àquilo que cerca uma realidade possivelmente mais árida e complexa. Estrategicamente, segurar as forças persas no desfiladeiro das Termópilas era parte de um plano elaborado previamente entre as principais cidades-Estado gregas, em especial Esparta e Atenas. O objetivo dos gregos era dividir as forças persas. Enquanto os espartanos auxiliados por frações de outras cidades gregas detinham a infantaria persa nas Termópilas, os atenienses enfrentavam os invasores pelo mar com suas trirremes, poderosos navios de guerra. Armadura de guerra Na HQ os espartanos marcham e lutam quase nus, cobertos apenas com seus mantos, armados de lanças e espadas além de um largo escudo. O que é improvável. Já era comum o uso de algum tipo de couraça ou armadura no século V a.C.. O que não significa algo simples. Há registros de que depois de meia hora de luta havia mais armaduras e escudos jogados no chão devido ao seu peso (aproximadamente 40 kg ao todo) do que corpos de soldados mortos. A derrota nas Termópilas de fato ajudou algumas cidades-Estado que vacilavam a unirem-se aos gregos. Com uma aliança entre Esparta, Atenas, Corinto e Mégara, a guerra terminou com a retirada de Xerxes depois das batalhas de Salamina e Platéia em 479. Uma "reação" grega só ocorreria mais de um século depois quando Alexandre, o Grande invadiu a Ásia dominando a Pérsia e, efetivamente, quase todo o mundo conhecido de então. Números Ainda vale registrar que os números indicados tanto por Frank Miller em 300 de Esparta quanto por Heródoto em As Histórias são aproximados. Nascido quatro anos após as Termópilas, a contagem de Heródoto foi feita baseada em relatos. Um deles era sobre o número estimado de capitães das forças de Xerxes. O que significa algo em torno de 1 milhão e 80 mil soldados. Outros historiadores consideram a cifra um exagero sendo o mais seguro considerar entre 180 mil e 200 mil soldados. Do lado grego, o mais razoável é considerar 7 mil soldados incluindo os 300 espartanos de Leônidas. Nos quadrinhos, mais do que respeitar uma precisão de detalhes, a intenção é usar alguns pontos cardeais da história para criar um bom enredo. Frank Miller, autor de dezenas de quadrinhos de sucesso como Sin City, Batman: O Cavaleiro das Trevas e Elektra Vive fez do passado algo mais familiar e palpável, exatamente da maneira como gostaria um historiador antigo. No entanto, fez isso sob a pena de resumir as Guerras Médicas a uma história de mocinhos e bandidos. Se isso é bom ou ruim cabe a cada um decidir, assim como fez o presidente do Irã Mahmoud Ahmadinejad que considerou o filme inspirado na HQ um "ataque psicológico à cultura iraniana".

Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.