Hugo Carvana volta a fazer cinema

No dia 7, Hugo Carvana deu a partida em seu sexto longa como diretor, Tempestade Cerebral. Filmou a primeira cena: um dueto de Marco Nanini e Alessandra Verney, com pequena orquestra, no estúdio da Rádio MEC

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Por Agencia Estado
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Quando indagados por que fazem cinema, diretores costumam buscar justificativas mais ou menos nobres, como missão, vocação, paixão, compulsão. Houve até uma publicação francesa, Pourquoi Filmez-Vous, nos anos 80, voltada para essa averiguação. É provável que Hugo Carvana seja totalmente original em sua justificativa. Ele diz que faz cinema pelo cheiro. Isso mesmo, pelo cheiro. Há 45 anos, a conselho de um amigo, decidiu fazer um teste para figurante na extinta "TV Tupi". Chegou ao produtor Jacy Campos, que dividia os candidatos em dois grupos - para cá e para lá. Carvana ficou no bloco "para lá", ou seja, dos destinados à porta de saída. Perdeu o bico, mas não o bom humor e ganhou ainda a definição profissional: "De cara, me apaixonei pelo cheiro do estúdio. Em seguida, pelo barulho, pela movimentação das pessoas. Decidi que mesmo reprovado, era por ali que eu queria ficar." Pouco depois, tentou novamente, desta vez como figurante de chanchada - e ganhou a vaga. Hoje, soma mais de 80 filmes, só como ator. "Nunca fui cinéfilo nem intelectual, e quando me perguntam por que faço filmes, respondo que é pelo cheiro. E é mesmo." No dia 7, Hugo Carvana voltou a sentir o "cheiro" das filmagens, ao dar a partida em seu sexto longa como diretor, Tempestade Cerebral. Dois dias depois de ter comemorado seus 64 anos, quase 5 depois de seu último filme, O Homem Nu, e também do diagnóstico de um câncer de traquéia, devidamente derrotado, Carvana dirigia a primeira cena do filme: um dueto de Marco Nanini e Alessandra Verney acompanhados de pequena orquestra, no estúdio da Rádio MEC. Ou melhor, entre o pianista Apolônio Brasil e a crooner Tânia, personagens principais da comédia que começou a ganhar forma pelos idos de 1984. Foi durante as filmagens de Avaeté, de Zelito Vianna na selva amazônica, que Carvana começou a pensar em um cérebro. Sim, um cérebro. O passo seguinte foi prover um dono para a massa cinzenta órfã. Com o tempo, consolidou a figura de um pianista, um bon vivant exemplar dos anos 50 e 60, amado pelas mulheres, festejado pelos amigos, invejados pelos inimigos. Encontrava assim o pretexto para satisfazer um desejo antigo - o de um dia fazer um musical. Adereço - Carvana admite ser lento na elaboração de roteiros. E foi principalmente durante a convalescença que aprofundou a idéia: "Queria um filme em que a música fosse personagem, e não adereço", revela. Por isso, Tempestade Cerebral estará cheio das canções que marcaram as melhores décadas do Rio, "quando as pessoas ainda andavam nas ruas, conversavam nas esquinas, encostavam-se em postes e, principalmente, varavam a noite em boates como Vogue, Sacha´s, Night and Day". Faltava, no entanto, encaixar um ingrediente tão significativo para Carvana quanto as músicas que quer homenagear: as chanchadas - gênero que lhe rendeu cerca de 30 papéis. A ligação veio quando optou por uma solução absurda, mas inteiramente pertinente à lógica das chanchadas: um cientista americano (José Lewgoy) decide vir ao Brasil capturar o cérebro de Apolônio e extrair, de seus neurônios, o gene da alegria para um lucrativo comércio internacional de clonagem humana. Coisas de globalização. Mas o cientista não será o único interessado na massa encefálica: antigos amigos, amantes, e até um filho que desconhecia, entrarão na briga pelas moléculas responsáveis pela alegria de viver do pianista. A tensão entre os que defendem e os que rejeitam a clonagem com fins comerciais criará algo como "o Apolônio é nosso", brinca Carvana, referindo-se à antiga campanha em defesa do petróleo nacional. Para alinhavar a trama rocambolesca, que começa no século 21 e retrocede a 1948, Apolônio (interpretado por Caio Junqueira na adolescência) brindará os espectadores com seu tremendo talento, em generosos flash-backs, reeditando o melhor da noite carioca dos anos 50 e 60. Detalhe: Nanini, até agora cantor bissexto no palco, só não engrenará na carreira de cantor se não quiser. "Para o papel, eu queria um cantor que também atuasse. Quando assisti a Uma Noite na Lua e vi o Nanini soltar a voz, não tive dúvida - Apolônio era ele", diz Carvana. Para viver Apolônio, há dois meses o ator tem tido aulas de canto com David Tygel, compositor e diretor musical do filme. "Ele está cantando para valer", atesta o professor. Nanini tem também estudado a colocação das mãos sobre o teclado, embora em algumas cenas suas mãos serão substituídas pelas de um pianista profissional. Para o perfeccionismo de Nanini, não importa. Há algum tempo se sente totalmente dominado pelo personagem e tem estudado música como quem se prepara para um concurso: "Interpretação é inspiração, mas nem sempre ela aparece. Então é preciso fundamentar muito bem o personagem para se ter um alicerce quando a inspiração não baixar." No caso, o alicerce é musical - e não se poupa. Leveza - Nanini está contente por trabalhar com Carvana: "Sempre tive vontade de fazer um filme com ele. Como a história apresenta muitas idas e vindas no tempo, permite uma atuação solta, leve." Diz ainda que nada melhor do que atuar sob a direção de alguém que também é ator. "Diretores como Carvana e Carla Camurati, sabem se aproximar, seduzir o ator, e estabelecer uma relação de muita confiança. Eles são como a gente, sabem das nossas vulnerabilidades e necessidades." Alessandra Verney, a crooner Tania, um dos muitos casos de Apolônio na vida, também foi descoberta no palco. Conta Carvana: "Fui por acaso assistir ao musical Cole Porter - Ele nunca Disse Que me Amava, e adorei a voz de Alessandra, o jeito dela. Este é seu primeiro papel no cinema, está um pouco nervosa, mas vai superar." Alessandra concorda, ainda surpresa com o convite, em sua estréia diante das câmeras. Mas é com aparente segurança que dubla a si mesma em Ponto Final, de José Maria de Abreu e Jair Amorim, o ponto de partida de Tempestade Cerebral. A trilha incluirá ainda canções como Minha Viola, de Noel Rosa, Se Todos Fossem Iguais a Você, de Jobim e Vinícius, Valsa de uma Cidade, entre outras, além de Outra Vez Nunca Mais, de Suely Costa e Abel Silva, feita para o filme. O principal palco das canções será uma réplica da boate Night and Day, recriada com o nome de Golden Night pelo diretor de arte José Joaquim Salles no mesmo local onde funcionou a original, no Hotel Serrador. Com todo o filme pronto na cabeça, Hugo Carvana faz questão de imprimir ritmo ágil às filmagens. "Comédia é ritmo, não dá para perder a mão." Filmará em cinemascope e encherá a tela de atores e amigos, como Silvia Bandeira, Louise Cardoso, Antonio Pedro, Antonio Pitanga, Jonas Bloch, entre muitos outros. "Gosto de cinema com muita gente - e meus filmes são como a festa que você dá sabendo que vai ter muito penetra e você fica feliz com isso." Almeja uma comédia irreverente, alegre, afetiva, mas também com farpas dirigidas à globalização enquanto realiza um passeio pela época de cabarés, teatros revistas, programas de rádio - sem nostalgia: "O filme não será lamento nem choro, mas relato de quem viveu os anos dourados." Ponta - Um ponto continua indefinido: Carvana ainda não decidiu se estará na tela ou não, nem que seja numa ponta, como fez em O Homem Nu, como motorista de táxi. E aproveitou o curto percurso para fazer um discurso em homenagem à cidade que sempre soube traduzir com tanta graça nas telas. Quanto à sua participação, explica: "Como ator, sempre fui muito rigoroso, como o Nanini, mas confesso que estou relaxando. Por isso, acho que não tem lugar para mim no filme." Ainda está decidindo e já pensa no próximo: uma história com três pessoas - mesmo sabendo que se trata de meta inatingível. Sempre cabe mais gente no cérebro - e no coração de Hugo Carvana. Tempestade Cerebral tem fotografia de Nonato Estrela e produção de Marta Alencar. Tempo previsto de filmagem: seis semanas.

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