Hollywood volta a narrar a vida de Sade

Causando um racha na crítica, estreou nos EUA o longa Contos Proibidos do Marquês de Sade, de Phillip Kaufman. O filme chega ao Brasil em 5 de janeiro

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Por Agencia Estado
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"Devemos queimar Sade?", perguntou a escritora Simone de Beauvoir em ensaio homônimo escrito em 1951 sobre a obra do marquês de Sade, o maestro da perversão sexual. Na segunda metade do século 20, mais respostas a essa indagação, datada desde a era napoleônica, foram surgindo. O resultado são centenas de livros e outros ensaios assinados por mentes tão distintas quanto as de Octavio Paz, Angela Carter e Camille Paglia. No teatro e no cinema, trabalhos seminais também foram criados, como a peça Marat Sade, de Peter Weiss; o longa-metragem homônimo que o teatrólogo inglês Peter Brook adaptou desse mesmo texto; além de Saló, a polêmica adaptação do cineasta italiano Pier Paolo Pasolini para o livro de Sade, Os 120 Dias de Sodoma. Na semana passada, causando um racha na crítica e sendo apontado como um dos filmes com grandes chances na próxima entrega do Oscar, estreou em cinco cidades americanas o longa Contos Proibidos do Marquês de Sade (Quills), do diretor Phillip Kaufman. O filme, que chega ao circuito brasileiro no dia 5 de janeiro, é estrelado por um elenco anglo-internacional. Mas a diferença de sotaques não prejudica a obra, como foram os casos das adaptações de A Casa dos Espíritos e Os Miseráveis. O ator australiano Geoffrey Rush interpreta Sade, encabeçando um elenco fenomenal, composto pelos ingleses Michael Caine e Kate Winslet e o americano Joaquin Phoenix. Sentença - Kaufman, que também é o diretor de Os Eleitos, A Insustentável Leveza do Ser e Henry & June, não filmava há sete anos. Durante esse período, a fatwa (sentença de morte muçulmana) decretada contra o escritor indiano Salman Rushdie por blasfemar contra o islamismo no livro Os Versos Satânicos, foi retirada e o esquisitão Marilyn Manson surgiu no cenário pop sendo tachado como o anticristo do rock. Segundo o roteirista Doug Wright, em cuja peça lançada em circuito off Broadway em 1995 o novo trabalho de Kaufman é baseado, essa nova leitura de Sade é uma homenagem aos dois artistas, Rushdie e Manson. "Meu Sade evoca o espírito de artistas com diversidade de idéias como Rushdie e Manson, ou seja, pensadores deliberadamente classificados como oposição à cultura dominante", diz o roteirista novato. "Minha idéia foi abrir uma discussão sobre a liberdade de expressão, nos tempos em que o senador Jessie Helms advoga contra", conclui o roteirista, citando o político do Estado americano da Carolina do Norte que critica o homossexualismo e o fundo governamental de incentivo às artes. E o diretor Kaufman acrescenta: "Nosso interesse era fazer um filme sobre as conseqüências da repressão, apresentando um Sade heróico e vilão." Asilo - Contos Proibidos do Marquês de Sade acompanha o fim do período de 27 anos em que o escritor de A Filosofia de Alcova e Contos Libertinos ficou encarcerado no asilo de Charenton, não muito longe da capital francesa. Por meio da lavadeira Madeleine (em excelente performance de Kate Winslet), o lascivo escritor e filósofo trafica seus manuscritos para os editores parisienses. Quando o livro Justine ou Os Infortúnios da Virtude é lançado, ganhando rápida notoriedade, uma cópia chega às mãos do imperador Napoleão que, ultrajado, despacha um reformista, o dr. Royer-Collard (Michael Caine), para Charenton, a fim de silenciar Sade. Charenton foi idealizado pelo dramaturgo Wright como uma versão secular do asilo de loucos de Um Estranho no Ninho. Sob a supervisão de Abbè Coulmier (Joaquin Phoenix), um padre liberal, Charenton é um reduto artístico, onde esquizofrênicos, psicopatas e aleijados encenam o grand guignol de Sade. Enquanto o enviado de Napoleão se perde de amores (e se mostra mais "sadista" que o próprio arrivista literário) por uma adolescente (Amelia Warner) criada por freiras interioranas, o marquês continua fora de controle, traficando outros exemplares de sua prosa. Ao assumir novamente o propósito de sua viagem, o dr. Royer-Collard confisca todas as penas de escrever (o quills do título) da ampla suíte de Sade, ornada por estátuas de casais praticando o coito e outros apetrechos para o prazer sexual, além de centenas de livros. Impossibilitado de escrever por vias normais, Sade toma de assalto sua pequena adega de vinhos e continua a fabricar seus contos em lençóis de linho, com o auxílio de um osso de frango. Sangue - Quando Madeleine é surpreendida na lavanderia com os lençóis, todos os móveis da cela do marquês são removidos. Sobra ao escritor o próprio sangue, tirado da ponta de seus dedos e aplicado como tinta sob seu terno azul de cetim. Antes de ser torturado numa cadeira em contínuas imersões numa tina de água, Sade passa seus últimos dias pelado na cela. Um truque derradeiro do escritor é ditar seus textos de cela em cela até seus pensamentos, um pouco desvirtuados, chegarem à lavanderia, onde Madeleine passava para o papel. Em sua minuciosa pesquisa para montar a peça Quills, Wright chegou à conclusão que, muito antes dos irmãos Lumière e do cinema digital de Lars Von Trier, existia Sade a pensar como um cineasta. "Grande parte das acrobacias sexuais de Os 120 Dias de Sodoma são biologicamente impossíveis, e elas se tornaram elementos literários da sátira e da fantasia", explica. "Mas nunca ninguém percebeu o potencial que Sade tinha em pensar tridimensionalmente", continua. "Se ele tivesse vivido no século 20, teríamos um cinema muito mais subversivo." Wright também tentou misturar a genialidade com a dubiedade do extremismo literário de Sade, classificado por muitos críticos como um trabalho de segunda linha, com pobreza de narrativa e evolução de personagens. "Sade era um grande poseur, pois, no auge de sua mais ultrajante descrição pornográfica, ele era sexualmente impotente", explica. "Quisemos captar a angústia e o desespero dessa pessoa que não conseguia mais a gratificação sexual." Fotografia - Para compor plasticamente a derrocada de Sade, Kaufman contou com a ajuda do jovem diretor de fotografia holandês Rogier Stoffers, que faz sua estréia numa produção de Hollywood depois de seu brilhante e opressivo trabalho em Caráter, longa de Mike van Diem que venceu o Oscar de melhor filme estrangeiro em 1998. "Adoro o espírito do cinema holandês e, em sintonia com Rogier, tentei trazer a matiz esverdeada dos quadros de Gerard David (1460-1523) e de Jean-Baptiste-Siméon Chardin (1669-1779) para meu filme", explica. Cenas de desconforto, como em Saló, de Pasolini, não foram usadas em Contos Proibidos do Marquês de Sade, apesar de uma passagem de necrofilia. "Esse Sade não é para chocar e sim para fazer muita gente pensar no estado atual de nossa cultura", diz Kaufman. Sade também foi interpretado recentemente pelo ator francês Daniel Auteil, no filme homônimo de Benoît Jacquot, já lançando na França.

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