Havana: "O Sonho de Rose" na liderança

Documentário da brasileira Tetê Moraes é um dos fortes candidatos ao Coral - o prêmio distribuído em Havana -, pela qualidade do filme, seu empenho político e emotivo (com música de Chico Buarque), o que conta num festival de corte engajado como este

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Por Agencia Estado
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Para uma platéia interessada, porém pequena, Tetê Moraes apresentou seu documentário O Sonho de Rose (Dez Anos depois), concorrente a um dos prêmios do 22.º Festival de Cinema de Havana. É assim mesmo no Cine Chaplin, onde o filme foi projetado. Trata-se de um público mais sofisticado, exigente, menor. É geralmente onde passam os documentários. Mas Tetê não está satisfeita. Em conversa com a reportagem diz que vai pleitear à direção do festival outra exibição, desta vez em um cinema de grande público. "O ideal seria o Cine Yara", diz, referindo-se ao mais popular cinema de Havana, que lota invariavelmente e é famoso por seu público entusiasta, partipante, e por suas filas intermináveis. Que às vezes degeneram em tumultos quando os 2 mil e tantos lugares da casa se mostram insuficientes para abrigar os interessados. De toda forma, com público grande ou não, O Sonho de Rose é um dos fortes candidatos ao Coral - o prêmio distribuído em Havana. Pela qualidade do filme, seu empenho político e emotivo (com direito a música de Chico Buarque e tudo o mais), o que conta num festival de corte engajado. Tetê ganhou o prêmio máximo do festival 13 anos atrás com O Sonho de Rose, o começo da história dessa líder camponesa, morta em circunstâncias suspeitas. O filme atual revisita os personagens do anterior, dez anos depois e verifica o que foi feito do sonho da posse da terra. Na apresentação do filme, a roteirista Tetê Vasconcellos advertiu a platéia que o filme iria mostrar a questão fundiária brasileira sob uma ótica menos romântica do que a da novela O Rei do Gado, apresentada pela televisão cubana. No capítulo documentário, outro destaque fica para La Espalda del Mundo, do espanhol Javier Corcuera. O diretor registra três histórias de vida, geograficamente distantes. Na primeira, uma criança peruana conta como ajuda a família a sobreviver, quebrando pedras. Não, não se trata de uma metáfora, o serviço dos garotos pobres de uma região peruana é esse mesmo, pegar na picareta e quebrar pedras que depois serão vendidas aos pedaços. Na segunda história, um ativista curdo, exilado na Suécia, conta a sua luta, e a de sua mulher, Leyla, pela autonomia de um povo sem pátria, espalhado por quatro países, onde são hostilizados: Turquia, Irã, Kuwait e Iraque. Na terceira, o personagem é um homem negro, condenado à morte no Texas. O depoimento é de arrepiar, como são os dos guardas e o do diretor da prisão. Essas histórias tão diferentes encontram seu ponto comum na dor humana. Corcuera, no entanto, não cai na armadilha comum desse tipo de documentário, e não passa o tempo todo lambendo a ferida. Seu objetivo é mostrar que há ali seres humanos que sofrem, mas tentam dar um sentido às vidas e melhorá-las. Em meio ao sofrimento, há cenas engraçadas como o expediente usado por meninos de rua de Lima para ganhar algum trocado. Entram nos ônibus que circulam pelo caótico trânsito da cidade e lêem para os passageiros as manchetes dos jornais. Há algo de comovente nesses pequenos locutores de notícias. Corcuera conta que os descobriu por acaso, como a muitas outras coisas. "Tínhamos um pré-roteiro, mas os personagens nos guiaram para uma outra visão das coisas, assumiram o papel de co-diretores do filme." Aliás, esse é o interesse do documentário, quando levado a sério. Os personagens se assumem como sujeitos da história e influem decisivamente no produto final. É o caso de O Rap do Pequeno Príncipe, de Paulo Caldas e Marcelo Luna, que também já estreou no festival. Vários outros filmes brasileiros também foram apresentados ao público de Havana. Entre os longas, Através da Janela, de Tata Amaral, Estorvo, de Ruy Guerra, e Condenado à Liberdade, de Emiliano Ribeiro, já foram marcados. Até agora não houve grande repercussão com essa amostragem do cinema brasileiro. Espera-se que depois da entrevista coletiva conjunta, marcada para amanhã, o interesse pelos filmes brasileiros aumente. Esse interesse de qualquer forma deve crescer quando for programado Eu Tu Eles, de Andrucha Waddington, que, por seu apelo popular e cor local, deve dar o que falar. Mas, por enquanto, a sensação é mesmo o mexicano Amores Perros, estréia no longa-metragem de Alejandro González Iñárritu, ganhador do prêmio da crítica na Mostra Internacional de Cinema São Paulo deste ano. Como se recorda, o filme mergulha fundo na violência da Cidade do México, metrópole (parece) mais caótica do que São Paulo, se é que isso é possível. As histórias, que se entrelaçam em um acidente de carro, são construídas com muita energia e originalidade. Passam grande força expressiva e, por isso, o filme tem sido comparado aqui em Havana a Trainspotting, de Danny Boyle, e a O Ódio, de Mathieu Kassowitz, dois exemplares recentes e emblemáticos das vidas desgarradas na modernidade. Menos notável é o novo filme de Francisco Lombardi, Tinta Roja. Apresentado num abarrotado (pleonasmo) Cine Yara em pleno sábado, mostrou a história de um jovem jornalista que se inicia na profissão pela editoria de polícia e tem um homem cínico e amargurado como chefe. Tinta Roja ("Tinta Vermelha") ganha em interesse quando se sabe que é uma recriação biográfica do escritor peruano Mario Vargas Llosa, que também iniciou a carreira pela crônica policial de um jornal limenho. O filme é muito bem narrado, apresenta um retrato cruel da sociedade peruana, traços que são características de Lombardi. Apesar dessas qualidades, o filme decepciona quando se percebe neles certos clichês, destinados, quem sabe, a ir ao encontro das expectativas de um público hipotético. Apesar desses senões, é uma obra enérgica, principalmente pelo trabalho de decomposição moral do personagem do velho jornalista. É um tipo de obra consciente da diferença entre ironia e cinismo e que mostra como este acaba sempre por cobrar seu preço.

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