PUBLICIDADE

Harry Stone, o "diabo" do cinema brasileiro

O ex-vice-presidente da MPA, morto na semana passada, encarnou várias vezes o papel de diabo do cinema nacional e de deus do cinema norte-americano. Personagem polêmica, Stone marcou a história do cinema e da cultura nacional. Por Igor Ribeiro

Por Agencia Estado
Atualização:

Harry Stone, o maior embaixador do cinema americano no Brasil, faleceu há uma semana, com 74 anos, devido a complicações relativas ao Mal de Alzheimer. Stone deixou um legado de mais de 40 anos como representante na América Latina da mais poderosa entidade cinematográfica do mundo, a Motion Pictures Association (MPA), que agregava os interesses dos sete maiores estúdios americanos: Columbia Tri-Star, MGM, Fox, Universal, Warner Bros, Buena Vista e Paramount. O ex-vice-presidente da entidade também levou consigo histórias lendárias sobre festas, lobbys, contatos e diversas outras atividades que visavam promover Hollywood no Brasil. "Foi uma pessoa única, pouca gente conseguiu fazer o que fez", lembra Steve Solot, que o substituiu em 1995 na vice-presidência. A troca no comando da América Latina foi, segundo Solot, uma resolução de comum acordo entre Stone e a sede americana. "Procurava-se uma mudança da postura da MPA diante da nova economia mundial. Deixávamos um viés mais ideológico e político para uma atuação mais técnica", afirma Solot. A postura política à qual Solot se refere era a grande habilidade que Stone tinha em manter e aumentar a influência do mercado americano cinematográfico no Brasil. Teve muitas vezes a seu favor a ditadura militar, que preferia liberar ao público brasileiro a facilidade e, às vezes, a trivialidade de Hollywood, do que permitir à platéia brasileira que assistisse ao "subversivo" cinema nacional. As sessões que ficaram conhecidas como "cineminha" - projeções reservadas de estréias americanas para políticos ou gente influente - garatiram a Stone os melhores contatos e a imposição americana maciça nas salas brasileiras. Conseguia ter acesso a documentos e leis relativas à cultura semanas antes de suas publicações. Era recebido nos gabinetes mais restritos do Itamaraty e, também, em outros governos ditatoriais da América Latina. Chegou a fazer amigos pessoais entre o meio político, como o ex-relações públicas do Senado, Luís Carlos Chaves. Essa diplomacia, por vezes, crescia além das fronteiras de Hollywood e colocava em contato autoridades americanas e brasileiras por questões variadas, além de garantir a supremacia cinematográfica americana por aqui. Esse quase-monopólio enfureceu algumas personalidades do cinema brasileiro. "Durante muito tempo ele foi o grande representante do dominador, do imperialismo, do poder da grana", dispara o diretor Carlos Reichenbach (de Dois Córregos e Alma Corsária). "Para mim o cinema é uma forma de expressão e não uma forma de ganhar grana", conclui Reichenbach. Gláuber Rocha, diretor de Deus e o Diabo na Terra do Sol e Terra em Transe, chegou a acusá-lo de agente da CIA. Stone, por sua vez, não escondia que o mercado era sua meta, afirmando e propagando que o cinema era o carro-chefe da indústria. Dentro dessa ótica, ele era uma excelência dentro de sua profissão. O cineasta paulistano Ugo Giorgetti, apesar de não tê-lo conhecido pessoalmente, concorda: "Era o seu trabalho, e ele o fazia muito bem. O que o cinema brasileiro precisava - e precisa - era ter alguém como ele lá fora". Aliás, Luiz Carlos Barreto - que tinha desavenças com Stone na esfera cinematográfica - já pensou numa solução parecida para o cinema nacional. Chegou a afirmar que era preciso "matar" Stone para salvar nosso cinema, mas mudou de idéia e disse, certa vez, que era preciso contratá-lo e fazer com que mudasse de lado. Era a irreverência e seu gênio amistoso que faziam com que gente como Barreto mudasse de opinião. Muita gente não conseguia fazer nada a não ser dar risada de muitas de suas atitudes. Solot conta que nos idos de 70, numa convenção de cinema de Brasília, Stone chegou a se fantasiar de garçon num hotel para entrar no quarto onde os cineastas brasileiros se reuniam e espionar quais planos tramavam durante o encontro. É também conhecido o caso em que ele organizou uma reunião entre realizadores brasileiros e o presidente mundial da MPA, Jack Valenti. Os brasileiros começaram a ficar agressivos, e Stone amenizava as críticas dos diretores ao traduzir as falas para o americano. Depois do incidente, brincou com Barreto: "Vocês querem que eu perca o meu emprego?" O cineasta Nelson Pereira dos Santos, um dos mestres do Cinema Novo, ao lado de Gláuber e outros diretores, também não guarda rancores e, pelo contrário, lamentou muito o falecimento de Stone. "Ele prestigiou o lançamento de um dos meus primeiros filmes, Rio Zona Norte (1957). Foi também alguém sempre bem humorado e muito gentil", recorda Santos. Além do presidente da MPA, várias personalidades de Hollywood eram trazidas por ele ao Brasil, colocando em contato a cena nacional com o glamour do cinema americano. Da mesma forma, tentava indicar filmes brasileiros às autoridades americanas, a quem distribuía fitas de filmes nacionais. "Quase todos os presidentes desde Kennedy receberam de Stone fitas brasileiras. O último filme que fez isso foi Central do Brasil", lembra Solot. Segundo ele, este tipo de ajuda foi cessando nos últimos anos, com o revigoramento da indústria cinematográfica brasileira, argentina e mexicana. As melhores festas do Rio - As sessões especiais de filmes americanos à alta sociedade carioca, cineastas e políticos, proporcionaram grandes festas, apontadas por alguns - como o diretor da MPA de distribuição no Brasil, Michael Murphy - como as melhores que o Rio já teve. Especialmente aquelas que aconteciam dias antes do Oscar eram as mais disputadas, na qual os filmes com maior chance aos prêmios eram apresentados. Eram ocasiões que ou incorporavam de corpo e alma o filme a ser lançado, ou fugiam facilmente do contexto cinematográfico. Para a primeira alternativa, por exemplo, é memorável a ocasião de lançamento do clássico de Brian De Palma, Os Intocáveis, no Hotel Meridian, quando organizou uma frota de carros antigos que remontavam à década de 60 para buscar os convidados, e fez com que todos os garçons se vestissem de gângsters. Na outra mão, era comum que seus "cineminhas" dessem lugar a verdadeiras celebrações libidinosas, regadas a sexo e drogas. Há quem diga que foi ele quem inaugurou esse tipo de festinha no País. "Principalmente as festas mais antigas, quase sempre no Copacabana Palace, eram muito soltas e badaladas, as vezes até exageradas", concorda Solot. "Apesar de ter comparecido poucas vezes, ficaram muito famosas as festas por isso", reforça Santos. Foi numa delas que juntou o astro americano Rock Hudson com a diva brasileira Ilka Soares para desmentir o boato de que o americano fosse homossexual. Há cinco anos, porém, Stone não mais promovia "cineminhas" (as sessões de Solot são mais comportadas). E há dois ele e a esposa, a brasileira Lúcia, não mais freqüentavam a vida social, devido aos cuidados inerentes ao tratamento do Mal de Alzheimer. O enterro aconteceu numa cerimônia só para familiares, no cemitério São João Baptista. A missa de 7º dia, na Igreja do Carmo no Centro do Rio, foi adiantada para a quarta-feira, devido às comemorações de Sete de Setembro que, ironicamente, sempre fazia questão de desfilar em seu uniforme das forças armadas americanas (em memória aos dias em que aprendeu a gostar do Brasil e falar português, quando conheceu os pracinhas brasileiros na 2ª Guerra). Solot adianta que em um mês deve ser organizado um último evento a homenagear Harry Stone. Um tributo à figura mais insubstituível do cenário cinematográfico brasileiro. Provavelmente um "cineminha", nos moldes das grandes e famosas festas que um dia promoveu.

Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.