Gus Van Sant faz filme sobre o cartunista que sabia rir de si mesmo

Em ‘A Pé Ele Não Vai Longe’, cineasta revive o corrosivo John Callahan, interpretado por Joaquin Phoenix

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Por Luiz Zanin Oricchio
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Num tempo cheio de mimimis e nhenhenhéns, talvez o novo filme de Gus Van Sant tenha um valor especial. Chama-se A Pé Ele não Vai Longe e ficcionaliza a vida do cartunista norte-americano John Callahan, famoso por sua verve ácida e politicamente incorreta. Acontece que a frase do título é criada pelo artista referindo-se a si mesmo. Sim, ele ficou tetraplégico num acidente de carro após uma bebedeira daquelas de lascar, em companhia de um amigo estroina que, mais sortudo, sofreu apenas escoriações. 

Linguagem de Van Sant. Fala para parte do público disposta a tentar algo mais sofisticado que histórias de super-heróis Foto: DIAMOND FILMS

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A história é bastante divertida, em especial pelo tom sarcástico impresso ao personagem por Joaquin Phoenix, em excelente desempenho. Mas não é apenas gozada, porque em momento algum Gus Van Sant ignora o drama humano do alcoolismo ou a tragédia que significa ser sadio e, de um dia para outro, perder praticamente todos os movimentos do corpo. 

A estrutura da narrativa é em flashback. Assistimos aos dias de farra de Callahan, antes do acidente, e depois o vemos, já tetraplégico, tentando parar de beber com a ajuda de um guru bastante heterodoxo, Donnie (Jonah Hill). 

Tem um lado interessante do filme, em termos da narrativa cinematográfica, que é a conhecida fluidez de Van Sant e a maneira como inova, mas sem produzir obras herméticas ou autocentradas. Fala para o público, pelo menos para aquela parte do público disposta a sair do ramerrão e tentar algo mais sofisticado que histórias de super-heróis. Os saltos no tempo turbinam a narrativa, sem confundi-la. E a elegância da câmera, ao construir planos e enquadramentos, ajuda na fruição. É ótimo cinema. 

E, sim, há Joaquin Phoenix, que dosa a intensidade sem levar a construção do perfil a uma caricatura. Respeita o personagem que interpreta, mas não demasiadamente a ponto de ser reverente, o que, num tipo meio anarquista, colocaria tudo a perder.  Aliás, o tratamento de Phoenix à personalidade do Callahan da vida real tem tudo a ver com o espírito geral do filme. A ideia, aqui, é tratar de coisas muito sérias porém sem se levar a sério demais. Há sempre um distanciamento irônico que tempera os fatos mais graves e evita que a trama se precipite no abismo da solenidade. Definitivamente, Van Sant não é um Spielberg – e neste caso isto é um elogio. 

Todos esses ingredientes – e o tratamento que Gus Van Sant dá a eles – fazem de A Pé Ele Não Vai Longe um filme fora do comum. Pelo menos em nossos tempos. Seria, no entanto, abusivo chamá-lo de “fora de moda”. Pelo contrário. Parece salutar justamente por, digamos assim, escovar os costumes a contrapelo do tempo. Quando diretores (e escritores, músicos, dramaturgos, etc) parecem morrer de medo de desagradar a este ou aquele grupo, Gus Van Sant exuma um personagem que não tinha medo de rir de tudo e de todos – a começar por si mesmo. 

John Callahan (1951-2010) nasceu em Portland, Oregon. Sofreu aquele acidente que mudou sua vida aos 21 anos. Quem dirigia o veículo não era ele, e sim um beberrão que conhecera num boteco. De festa em festa, de bar em bar, acabaram esborrachando-se no carro de Callahan e este levou a pior. Após o acidente, seguiu com muita determinação um processo de fisioterapia e reabilitação e conseguiu readquirir, em parte, movimentos da parte superior do corpo. Desenhava com dificuldade, mas isso não aparecia na obra, com traços de grande leveza e também de extrema contundência. Mexia com temas tabus como a sexualidade, o racismo e própria enfermidade. Era um provocador e usava o desenho como forma de prospectar seus próprios demônios internos, como faz todo artista. 

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Callahan era tão incisivo, nos Estados Unidos, como foi Georges Wolinski na França e Henfil entre nós. Artistas que põem no papel o que poucos têm coragem de expressar e, por isso mesmo, nos fazem pensar e crescer como adultos. 

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