Guillaume Nicloux fala da nova versão de ‘A Religiosa’

Versão de livro de Diderot já foi levada ao cinema por Rivette

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Por Luiz Carlos Merten
Atualização:

Em Berlim, em fevereiro, o diretor francês Guillaume Nicloux falou de seu duplo e até triplo desafio – fazer um filme adaptado de A Religiosa, de Diderot, já seria difícil pela própria personalidade do escritor, mas havia também o fato de que um grande da Nouvelle Vague, Jacques Rivette, já se havia baseado na história de Suzanne Simonin, personagem que, nos anos 1960, foi interpretada por Anna Karina e agora é vivido pela jovem Pauline Étienne. O maior desafio de todos, porém, Nicloux disse a um grupo de jornalistas, foi de foro mais íntimo.

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Aos 18 anos, ele estava tão convencido de que queria ser padre que até pronunciou os primeiros votos. “Salvou-me o rock-n’-roll”, ele brincou. “Em vez de padre, virei punk.” Por conta disso, o anticlericalismo atribuído a Diderot ao contar a história de sua jovem religiosa – Simone é forçada pela família a ir para um convento – poderia ter sido exacerbado pelo diretor roqueiro. “Mais que um resto de fé que ainda sobrava em mim, ou um desejo de agredir a instituição da Igreja, o que me moveu foi uma tentação panteísta. Simone rebela-se contra a família e a autoridade de cada convento em que vive sua via-crúcis de noviça sem vocação. Para mim, A Religiosa é, acima de tudo, uma ode à liberdade.”

Não é fácil medir-se com um livro e um filme, ambos clássicos. Nicloux ousou. E teve colaboradores importantes no processo. Isabelle Huppert tem a parte talvez mais difícil – faz a madre que, na atmosfera carregada do convento, tenta iniciar Suzanne no lesbianismo. “Aproximei-me da minha personagem sem nenhum preconceito e sem emitir juízos de valores sobre o que ela faz”, disse Isabelle ao repórter numa entrevista que o Estado publicou à época do Festival de Berlim. Sua dificuldade não foi a questão sexual, mas outra, bem mais prática – “Represento todo o tempo com as mãos e o corpo escondidos pelo hábito. É como vestir uma armadura. Só restam os olhos e a boca para a expressão.”

Nicloux conta que a condição da mulher é um assunto que lhe interessa, até por ser pai de três filhas. “Você pode pensar que o mundo mudou desde que Diderot escreveu seu texto, mas, agora mesmo, ainda existem sociedades, e não necessariamente as regidas pela religião, em que a condição das mulheres segue precária. Minha filha de 15 anos coletou o relato horrível de uma mulher que se recusou a ter relações com o marido e ele, em represália, cortou seu nariz e suas orelhas.”

A versão de Rivette, de 1966, tratava da alienação do corpo de Suzanne Simonin – na Igreja, ela era submetida a duros castigos para que se dobrasse. O corpo punido rebelava-se, mas, ao escapar da instituição religiosa, ela caía em outro horror – prostituía-se. Nicloux conta que ignorou a versão de Rivette e também outro famoso filme sobre a vida no convento – Thérèse, de Alain Cavalier, de 1986. O cinema não foi sua fonte de inspiração. O livro (de Diderot), sim.

Quando Diderot publicou sua obra – em 1796 –, o caso de Marguerite Delamarre ainda era recente. Ele inspirou-se na história real da jovem forçada a entrar para o convento contra a vontade. O livro é o relato das sevícias e barbáries cometidas em nome da devoção religiosa. Diderot já havia sido preso (por outro motivo) e conhecia a privação da liberdade. Escreveu seu livro num tom irônico e discreto. Jacques Rivette, tentando ser fiel, protagonizou o maior escândalo político da Nouvelle Vague – seu filme foi proibido pela censura na França.

O diretor da nova versão não quis radicalizar nem o sexo nem a barbárie – mas ambas estão lá. Ele quis contar a história pelo seu ângulo de resistência. Para isso, voltou aos diálogos de Diderot e aos ambientes. Como Nicloux deixou claro, “precisava do silêncio do claustro”. O convento, ou os conventos – os espaços físicos do tormento de Suzanne – eram-lhe necessários para contar sua história com realismo. “Em nenhum momento pensei em ensaiar com os atores, mas necessitava de conventos de verdade, com paredes espessas e sua luz, ou escuridão, natural para que eles experimentassem as emoções das personagens.”

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Tanto como o elenco, o décor é personagem de A Religiosa. Nicloux filmou a primeira parte num convento na Alemanha e a segunda, no interior da França, na região do Rhône (Ródano). Na fase de preparação, assistiu a um documentário sobre (ex) religiosas. Sua bússola foi o depoimento de uma mulher que confessava haver perdido a fé em Deus, mas que, mesmo assim, durante 18 anos permaneceu no convento, rezando com fervor, na expectativa de que um milagre se produzisse e ela voltasse a crer. “Seu luto foi o que me guiou. Queria reproduzir sua angústia, mas na perspectiva de quem não silencia e luta.”

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