PUBLICIDADE

Guarnieri, homem de teatro com obras-primas no cinema

Passagem do ator pelo cinema, assim como no teatro, foi marcante

Por Agencia Estado
Atualização:

Ele foi, fundamentalmente, um homem de teatro, mas a passagem de Gianfrancesco Guarnieri pelo cinema brasileiro foi marcada por obras importantes. Quando ele surgiu, para revolucionar, como ator e autor, o teatro, nos anos 1950, o cinema que se fazia em São Paulo era o da Vera Cruz e das empresas que a sucederam; no Rio, o das chanchadas, na Atlântida. Com Rio 40 Graus, de Nelson Pereira dos Santos, algo se passou no cinemas nacional e o neo-realismo, com sua estética de fundo social, passou a dar as cartas. Em São Paulo, Nelson apadrinhou Roberto Santos, que fez O Grande Momento, obra mítica da qual Guarnieri foi o protagonista. Quando O Grande Momento estreou, em 1958, outra famosa criação de Guarnieri estava nascendo no palco, sob a direção de José Renato, Eles não Usam Black-Tie. O teatro buscava diretrizes estéticas para a atuação política e o ator e dramaturgo, ligado aos comunistas, deu sua contribuição, criando uma peça baseada na inclusão de operários em greve, algo raro no teatro brasileiro da época. Na seqüência, foi criado o Seminário de Dramaturgia do Arena, no qual Guarnieri declarou que suas influências estavam no neo-realismo de Vittorio De Sica e Roberto Rossellini. Devia ser o que o unia tanto a Roberto Santos, que coordenou, a partir de 1969, um filme experimental de produção complicada, que só ficou pronto em 1973. Sob a influência de Santos, Guarnieri escreveu e dirigiu o episódio Aquele Dia 10, de Vozes do Medo, que conta a história de dois operários da construção civil, no dia em que recebem o pagamento. Foi a única experiência de Gianfrancesco Guarnieri na direção de cinema, mas ele também escreveu, além de interpretar, a adaptação que Leon Hirszman fez de Eles não Usam Black-Tie, no começo dos anos 1980. O filme foi aclamado, nacional e internacionalmente, com direito a prêmios importantes no Festival de Veneza, mas basta vê-lo hoje bem dia para verificar que Black-Tie ficou datado. O mundo mudou tanto que seria necessário refilmar a história não mais pelo ângulo de Otávio, o operário consciente, interpretado por Guarnieri, mas pelo de seu filho, o arrivista Tião, que Carlos Alberto Riccelli cria na tela. Mesmo superado, historicamente, o filme tem uma das grandes cenas do cinema brasileiro - o desfecho em que Otávio está sentado à mesa com a mulher, Romana, a grande Fernanda Montenegro, e ela cata feijão, lançando ao lixo os grãos que não prestam. A metáfora é clara - na concepção de Hirszman e Guarnieri, feita sob o impacto das greves no ABC, quando surgiu a liderança de Luiz Inácio Lula da Silva, o grão que não presta é o filho que não tem consciência de classe e trai a convicção do pai. Por bela que seja, e é magnífica, pelo tom, pela interpretação, a cena tornou-se irreal neste mundo globalizado. Três anos antes, Guarnieri havia formado com Lima Duarte e Maurício do Valle o trio de O Jogo da Vida, que Maurice Capovilla adaptou de Malagueta, Perus e Bacanaço, de João Antônio. Nos anos 1980, depois de Black-Tie, Guarnieri nunca mais foi protagonista no cinema. Passou a interpretar, invariavelmente, italianos e/ou anarquistas, só não caindo no estereótipo porque imprimia humanismo aos personagens. Tornou-se um daqueles coadjuvantes de luxo, que roubam a cena dos atores principais. Em Gaijin, os Caminhos da Liberdade, de Tizuka Yamasaki, sobre os primórfdios da colonização japonesa no Brasil, foi o anarquista Enrico que se solidariza com os nipônicos explorados nos cafezais. Em O Quatrilho, de Fábio Barreto, fez o padre bondoso que aparece somente nas cenas iniciais, para oficiar o casamento das duplas que depois vão mudar. Em Asa Branca, de Djalma Limongi Batista, ele contracena com Edson Celulari na cena mais bonita, a mais densa do filme. Celulari faz o jogador do interior que vem tentar a sorte na cidade grande. Perdido na noite, ele encontra Guarnieri como o homem amargurado que se embriaga no bar, bebendo todas. São poucos minutos, mas o solo de Guarnieri é excepcional. Para grandes atores, o tamanho do papel não é, nunca foi, o mais importante.

Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.