Geraldine, a guardiã do legado de Chaplin

A atriz, filha de Charles Chaplin, comenta sua nobre missão de relançar boa parte da obra do pai em DVD, a reestréia de O Grande Ditador em cópia restaurada e sua participação no novo filme de Pedro Almodóvar

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Por Agencia Estado
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A silhueta esbelta denuncia o passado da bailarina que adotou para a vida inteira a disciplina de sua primeira paixão profissional. Mas a atriz Geraldine Chaplin, a mais famosa do clã depois do patriarca Charles, não cansa de repetir que, desde o início, o cinema lhe foi mais fiel do que o balé. Na verdade, a ex-aluna do Royal Ballet Academy de Londres foi a primeira a enxergar uma certa incompatibilidade entre o seu corpo e a arte de dançar na ponta dos pés. "Eu era uma grande bailarina... mas apenas na minha cabeça. O meu corpo não acompanhava o ritmo das coreografias", admite Geraldine, de 58 anos, em entrevista ao Estado. "Para mim, o balé foi um noivo que me traiu. O cinema, ao contrário, resultou num casamento pleno e gratificante. Um casamento de conveniência, claro, mas duradouro, profundo e gratificante." A união era conveniente porque, filha de quem era, não lhe foi difícil arranjar uma posição na indústria. "Todas as portas estavam abertas para mim desde o início, apesar de, na época, eu não ter experiência alguma na arte da interpretação. A minha agente veio logo me dizer: ´Ah, se você vai fazer cinema tem de fazer um filme com o Jean-Paul Belmondo.´ Ele era o Tom Cruise daquela época", recorda. Assim, Geraldine cedeu às pressões à sua volta e foi parar no elenco de O Preço de um Resgate (1964), de Jacques Deray, contracenando com Belmondo, claro. Logo em seguida, veio o estrondoso sucesso de Dr. Jivago (1965), de David Lean, e Geraldine não parou mais. Até porque a experiência no set da superprodução do cineasta britânico lhe deu a confiança de que a atriz precisava: "Foram meses e meses de filmagens, trabalhando com Alec Guinness, Julie Christie, Omar Sharif, enfim, um grupo estupendo de atores. Foi a melhor escola de arte dramática que eu poderia ter freqüentado." Uma coleção de tipos excêntricos e grandes diretores depois (Robert Altman, Alan Rudolph, Martin Scorsese, Richard Attenborough, entre eles), Geraldine festeja sua volta ao cinema espanhol, cinematografia que costumava freqüentar com mais assiduidade entre os anos 60 e 70, período em que esteve casada com o diretor Carlos Saura - com quem fez Ana e os Lobos (1972), Cria Cuervos (1975) e Mamãe Faz 100 Anos (1980), entre outros títulos. Em fevereiro, a atriz deixou o conforto de sua casa na Suíça (tem outra em Madri) para comparecer ao Festival de Berlim para promover En la Ciudad sin Límites, de Antonio Hernandes, uma das atrações da mostra Panorama. No mês seguinte, já estava na Espanha, lançando Hable com Ella, o novo drama de Pedro Almodóvar. Filho - "Eu me sentia meio abandonada pelo cinema espanhol nos últimos 20 anos. Quem promoveu esse reencontro foi o meu filho Antônio Saura, que é produtor e que, há dois anos, me chamou para fazer o filme de Hernandes. Pensei: ´Por que não?´ Seria uma ótima oportunidade para voltar à Espanha. Logo em seguida, veio o convite de Pedro. Espero que esses trabalhos marquem o início de meu retorno ao cinema espanhol", deseja a atriz. Almodóvar, aliás, reservou uma surpresa para Geraldine em Hable com Ella: enfrentar novamente o noivo traidor, ou seja, o balé. No filme, a atriz empresta o perfil pequeno e delicado a Katerina Bilova, uma mestra das sapatilhas. Não chega a ser um papel exatamente ameaçador para quem já vivera figuras histórias nas telas, como Coco Chanel e madre Teresa de Calcutá. Mas envolveu um certo grau de ansiedade e até pânico. "Você já imaginou o meu constrangimento inicial? Eu nunca havia largado o balé; foi ele quem me largou, e aquilo havia sido uma experiência dolorosa. Durante muitos anos, eu não pude nem sequer passar por um espetáculo de balé na TV que eu tinha de desligá-la. E agora me vinha o Pedro, um cineasta que eu admirava há tempos, me pedir para fazer uma bailarina. Eu não podia acreditar!", lembra a atriz. "Tive de reaprender a linguagem do balé, os movimentos das mãos, tudo. Mas acabou se tornando uma experiência encantadora. É um papel muito divertido e simpático, embora pequeno. E Pedro é um gênio autêntico." Trampolim - A passagem por Berlim deixou Geraldine particularmente emocionada. O festival programou a exibição de uma cópia restaurada de O Grande Ditador (1940), uma das obras-primas deixadas por Chaplin, para encerrar, em caráter hors concours, o evento. A sessão serviu de trampolim para o cronograma de relançamento, em cinema e posteriormente em DVD, de cerca de 18 longas-metragens dirigidos e protagonizados por Carlitos - a família Chaplin confiou à MK2 francesa o trabalho hercúleo de apresentar às novas gerações um pacote que inclui títulos como A Corrida do Ouro (1925), Luzes da Cidade (1931) e O Garoto (1921). A projeção de O Grande Ditador, escalado para voltar aos cinemas a partir de outubro, foi particularmente significativa. Principalmente porque, como bem lembrou Geraldine, a sessão de gala da paródia à ascensão de Hitler na Europa aconteceu há poucos quarteirões do bunker em que o grande ditador alemão da vida real operava. "Foi a primeira vez que o filme foi mostrado na tela grande em muitas décadas. E o discurso final do nazista Hynkel, criado por papai, é absolutamente atual. É um filme de certo modo otimista, mesmo que realizado há 62 anos; eu, pessoalmente, sou pessimista. Mas esse discurso há de ser escutado novamente pelas novas gerações. É impressionante. Particularmente o trecho em que ele diz: ´Há que se dar uma chance para os homens trabalhar. Aos jovens, um futuro e aos velhos, a segurança. Há que se eliminar as fronteiras, o ódio, a intolerância e a cobiça", recita atriz, empolgada. Os Chaplins passaram adiante os direitos sobre a obra do comediante, perseguido por puritanos e por caçadores de bruxas, para que sua mensagem não se perdesse com o tempo. "Papai era um homem que não acreditava nos ideais, pois os achava vazios e, portanto, perigosíssimos. Para ele, o cinema era um meio de ridicularizar e satirizar isso. Seus filmes são carregados de mensagens anticapitalistas e anticorporativistas. Como ser humano, ele era fiel ao seus princípios e isso é muito difícil de se encontrar hoje em dia", observa a atriz. Até segunda ordem, o legado ideológico e o imaginário dos Chaplins está garantido.

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