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Garoto encantador prega direito à diversidade em 'Pelo Malo'

Longa aponta para o peso do olhar do outro na busca da afirmação individual

Foto do author Luiz Zanin Oricchio
Por Luiz Zanin Oricchio
Atualização:

Estamos em Caracas, na Venezuela, nos últimos dias de vida de Hugo Chávez, irremediavelmente doente para tristeza de uma multidão de seguidores e alegria dos opositores. A Venezuela, como se sabe, é até hoje, Chávez morto e Maduro empossado, um país dividido, muito mais do que o Brasil, se é que se pode imaginar situação semelhante. A família mora num conjunto habitacional bastante precário. A vida é uma luta. Não na miséria, mas no limiar da pobreza.

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Esse pano político de fundo aparece com discrição no filme de Mariana Rondón. Em nenhum momento tenta-se colocá-lo à frente da trama, mas é ele que empresta sentido ao conjunto, se observarmos bem. A história, aquela que vem encantando o público nos festivais por onde o filme passa, é a do garotinho de cabelo rebelde e suas desavenças com a mãe.

Um bom filme, como Pelo Malo, faz com que o espectador se identifique com o personagem, sofra seus problemas e sinta suas alegrias, ao mesmo tempo em que revela algo do seu entorno, do seu tempo e de suas circunstâncias.

Junior quer alisar o cabelo para uma foto da escola. Quer sair bem na foto, como todos nós – no sentido literal e no figurado. Há uma cena muito bonita e significativa. Junior se olhando no espelho, metade do cabelo liso, metade crespo. Quem é Junior? Qual é o verdadeiro Junior?

Pelo Malo fala, obviamente, de uma questão de identidade. Aquela que afeta um pré-adolescente, mas também mexe com adultos e com uma nação que não sabe direito que rumo tomar. Seguir o caminho de uma suposta tradição (bolivariana, por supuesto), como faz questão de reafirmar o líder moribundo? Ou buscar outros modelos, também supostamente mais "civilizados", "adiantados", etc? "Quem nos diz aonde ir?", se pergunta o povo.

E quais são os modelos? Junior quer alisar o cabelo para se parecer a um astro pop de nome americanizado, Henry Stephen, que, num disco colocado por Junior, canta Meu Limão Meu Limoeiro, no arranjo tornado famoso por Wilson Simonal. A garotinha amiga de Junior deseja ser miss, tradição também forte na Venezuela. Astro pop e modelo de beleza – eis as duas aspirações disponíveis aos jovens da periferia.

Para além dessas circunstâncias, Pelo Malo aponta para o peso do olhar do outro na busca da afirmação individual. A sabedoria popular, estratificada ao longo de gerações, diz que a receita simples da felicidade consiste em nos aceitarmos como somos. Verdade pura. Mas também se deve dizer que é a meta mais difícil de atingir, uma vez que vivemos em uma sociedade que está o tempo todo nos impondo modelos inatingíveis e dizendo que devemos ser como eles. Isso na Venezuela e em qualquer parte.

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Vivemos sob o regime do ideal publicitário, com seus ideais de beleza, virilidade, feminilidade, energia, destreza, competitividade, etc. No fim das contas, sobra pouco espaço para ser como somos. Ou, pelo menos, essa afirmação de identidade pessoal passa pelo crivo de uma grande luta a ser travada e não de algo que nos é dado de graça, como se fizesse parte da natureza.

Se isso acontece para os indivíduos, mais ainda para as nações. Repare bem no discurso de pessoas que se definem como democratas, tolerantes, paladinas das liberdades, etc, e vejam se elas respeitam mesmo o direito de autodeterminação alheio. O pequeno Junior, com seu "cabelo ruim", representa um pouco essa luta pelo direito à diversidade.

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