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Francês Pallières reflete sobre o filme 'Michael Kohlhaas'

Mads Mikkelsen carrega a bandeira de herói em novo longa

Por Luiz Carlos Merten
Atualização:

Literatura e teatro pavimentaram a via de Arnaud des Pallières para o cinema. É o diretor de Michael Kohlhaas, com Mads Mikkelsen, que estreou quinta nos cinemas brasileiros. O filme integrou a competição, em maio. O próprio diretor veio ao Festival do Rio. Em 1989, estudante de cinema, Pallières convida Gilles Deleuze a ministrar uma palestra na escola e o filmou. Fez assim seu primeiro filme - Qu’Est-ce Que l’Acte de Création?

O que é o ato de criação? É uma pergunta que Pallières tem se feito, até para conceituar os filmes que realiza. Os longas, em geral, são duros - Drancy Avenir aborda o antissemitismo no quadro contemporâneo da periferia parisiense. Adieu cruza diversas histórias para mostrar a indiferença, quando não a hostilidade do francês médio, perante os imigrantes. Michael Kohlhaas pode parecer uma escolha inesperada de um autor militante. O título brasileiro ajuda a colocar as coisas em perspectiva. Ao nome do herói, soma-se um subtítulo - Justiça e Honra.

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Pallières tinha 8 anos - nasceu em 1961 - quando o alemão Volker Schloendorff, que anunciara o despertar do novo cinema alemão com O Jovem Toerless, adaptou a obra famosa de Heinrich von Kleist, com David Warner e Anna Karina no elenco. No Brasil, chamou-se O Tirano da Aldeia. O livro passa-se no século 16 e conta a história de um criador de cavalos de Brandenburgo que realiza uma viagem e atravessa a Saxônia. A título de imposto, o regente lhe toma dois cavalos. Ele pede justiça às cortes, mas elas reafirmam o direito do regente. Michael reage com violência e incendeia propriedades na Saxônia. Inicia-se uma disputa que se torna cada vez mais violenta. A revolta do homem só catalisa a insatisfação coletiva, e nem o próprio Martinho Lutero, numa carta de advertência a Michael, consegue fazê-lo desistir do que já virou um movimento de protesto.

A história - real - envolvia um certo Hans Kohlhaas, rebatizado como Michael por Von Kleist na primeira vez que ele tratou do assunto, em forma de fragmentos, no volume 6 do seu jornal literário Phobus, em 1608. Dois anos mais tarde, Kleist deu o tratamento definitivo à figura de Michael no primeiro volume de suas novelas (Erzahlüngen). A versão de Schloendorff, logo após Maio de 68, adiciona imagens dos protestos nas ruas de Paris, buscando um paralelismo entre a revolta dos estudantes e a de Hans/Michael. “O filme anterior também concorreu em Cannes e isso sempre me levou a crer que a minha versão não teria espaço no festival. Foi uma bela surpresa poder passar o filme na Croisette”, disse Pallières, no Rio.

“Embora clássica, a história não se perdeu através do tempo. A luta por justiça e honra continua a ser um tópico essencial neste mundo de economia globalizada e aviltamento da dignidade humana.” O diretor lembra que o próprio Kleist buscou no episódio real a estrutura dramática para falar sobre as campanhas napoleônicas que afligiam a Europa da época. Mas o estilo - a indagação existencial transformada em crônica - prenuncia a modernidade. Kleist estava adiante de sua época. Continua - diz o diretor. Dois fatores foram decisivos para que ele embarcasse no projeto - “O primeiro foi o aval de Mads (Mikkelsen). Precisava de um ator intenso e carismático para carregar a bandeira (o ‘drapeau’) do herói. Mas eu também precisava colocar esse homem numa paisagem convincente.”

Pallières filmou em florestas que realçam o aspecto bárbaro dos conflitos atravessados pelo protagonista. Ele assume suas influências - o visual lembra muito o dos filmes históricos de Werner Herzog quando a ação se concretiza no teatro da natureza. Nos interiores, evoca muito mais o Macbeth de Roman Polanski. E todo o filme tem uma pegada de western, com muitos closes de Mikkelsen - à maneira de Sergio Leone. Ele admite que todas essas influências poderiam ser disparatadas. Seu desafio foi manter o filme tenso, e humano. O desfecho realça uma maneira de construir a saga do herói, envolto no mito. Só para lembrar - em Cannes, este ano, o argentino Lisandro Alonso e outro nórdico, Viggo Mortensen, foram na contramão e desconstruíram o mito em Jauja.

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