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Filmes transmitem o significado do horror do 11 de Setembro

Depois de produções como o documentário "Fahrenheit 11 de Setembro", de Michael Moore, é a vez do cinemão retratar o atentado às torres gêmeas; "Vôo 93", de Paul Greengrass, está em cartaz no País

Por Agencia Estado
Atualização:

Havia a suspeita de que Hollywood fosse retaliar, ressuscitando heróis como os interpretados por Sylvester Stallone em "Rambo 2 - A Missão" e por Chuck Norris em "O Supercomando", que venciam na ficção a guerra (do Vietnã) que os EUA haviam perdido na realidade. Nos anos precedentes ao ataque às torres gêmeas, o cinemão transformara árabes e mafiosos russos, ligados ao terrorismo internacional - ao qual, invariavelmente, vendiam ogivas nucleares roubadas do antigo arsenal soviético -, em vilões preferenciais. Você já podia imaginar Stallone voltando à forma (e às armas) para vencer a Al-Qaeda, sacando Osama Bin Laden do seu último esconderijo. Não foi nada disso que ocorreu. Hollywood respondeu à crise com a politização crescente de sua produção. Foi o que aqui veio dizer o redator-chefe da revista "Cahiers du Cinéma", Jean-Michel Frodon, no recente ciclo de debates intitulado "O Esquecimento da Política". Frodon veio discutir o contrário, o cinema que inventa a política. Por mais interessante que tenha sido, não disse nada de muito novo. Só por ignorância ou má fé, críticos e estudiosos não perceberiam que algo importante está se passando em Hollywood. Nestes cinco anos decorridos desde o fatídico 11 de Setembro, poucos filmes foram produzidos tratando diretamente do ataque ao World Trade Center. O mundo nunca mais foi o mesmo depois que aqueles dois aviões colocaram abaixo um dos símbolos mais reluzentes da vitória do capitalismo. A geopolítica internacional mudou e não apenas na grande política. No cotidiano das pessoas, a paranóia por segurança tornou todo mundo suspeito. Basta fazer uma viagem internacional e passar pelo sistema de segurança dos grandes aeroportos da Europa e dos EUA para perceber. O mundo mudou quase que instantaneamente, mas o cinema precisou de tempo para encarar o ataque do terror em Nova York. No calor da hora, surgiu o filme múltiplo "11 de Setembro", desigual, por certo, mas com alguns episódios impressionantes. Num plano-seqüência memorável de 11 minutos e nove segundos, o israelense Amos Gitai mostrava um ataque do terror no Oriente Médio do ângulo de uma repórter de TV que queria colocar no ar as imagens de destruição ao seu redor, mas a rede estava mais ocupada transmitindo diretamente das ruínas do World Trade Center. Grande diretor de esquerda - um dos últimos (o último?) que ainda se define assim no mundo pós-globalização -, Ken Loach preferiu lembrar outro 11 de Setembro, o de 1973, quando a CIA participou do processo de desestabilização do governo do presidente Salvador Allende, no Chile, e o bombardeio do Palácio de La Moneda consolidou uma nova fase na América Latina, a dos governos brutais como o do ditador Augusto Pinochet. Instalado no posto de polemista de plantão do cinema americano, Michael Moore fez história com seu documentário "Fahrenheit 11 de Setembro", mesmo que não tenha conseguido atingir seu objetivo declarado - o de impedir a eleição do presidente George W. Bush para um segundo mandato. Moore sempre se referiu à eleição, jamais falou em reeleição, convencido de que Bush filho, no primeiro mandato, só chegou ao poder graças à fraude nas eleições da Flórida, quando eleitores negros foram impedidos de votar (tese também encampada por Spike Lee). Moore é o documentarista que os grandes nomes do documentário detestam. Fale com qualquer um deles e dirão que a manipulação, de informações e personagens, por Moore, é tão desumana quanto o totalitarismo que ele diz combater. Pode ser que tenham razão - aliás, têm -, mas as ligações da família Bush com a família Bin Laden e a força dos sauditas na economia americana, que Moore denuncia com dados irrefutáveis, são coisas que você não encontra na mídia. Cria-se um debate importante - ética versus estética. A crítica aos fins de Bush justifica os meios de Moore? Assunto complexo, que há anos tem alimentado polêmicas. Somente agora, cinco anos depois, o cinemão está conseguindo colocar na tela o significado do horror do 11 de Setembro. Paul Greengrass, em "Vôo 93", e Oliver Stone, em "World Trade Center", que estréia dia 29, são manipuladores como Michael Moore. Nenhum dos dois reza pela cartilha de segurança máxima do presidente Bush, mas destacam a importância de não esquecer. Se o 11 de Setembro mudou nossas consciências - uma data somente comparável ao 5 de agosto de 1945, quando explodiu a bomba em Hiroshima, iniciando a era atômica -, Greengrass e Stone contam a história dos heróis anônimos daquele dia. O que você faria, se estivesse lá? Os passageiros do vôo United 93, o único que não atingiu seu objetivo - havia quatro aviões: dois foram lançados contra o World Trade Center, o terceiro contra o Pentágono; o quarto, presumivelmente, contra o Capitólio, em Washington -, dão a vida para abordar o ataque do terror. Os bombeiros de Stone vão ao limite e ficam, eles próprios, prisioneiros dos escombros das torres gêmeas. Não esquecer - mas "Vôo 93", o único que já estreou no Brasil, por mais eficiente que seja como reportagem dramática, não é grande como cinema. O melhor que Hollywood tem feito para responder ao 11 de Setembro deve ser pesquisado em outras áreas e até no grosso de sua produção. Tem havido um número muito expressivo de filmes que parecem anódinos, mas que, bem analisados, respondem às necessidades do momento histórico. Mesmo uma comédia aparentemente boba como "A Agenda Secreta do Meu Namorado", de Nick Hurran, com Brittany Murphy, não deixa de colocar o tema da desconfiança nas instituições a partir das relações interpessoais. Nem a mídia, manipulada por Bush, escapa ao olhar arguto do diretor. A produtora de TV que manipula tudo e todos e acha que está certa, por dar ao público o que ele quer - mas que, na realidade, ele é levado a querer por ela e outros profissionais igualmente antiéticos - tem a cara da era Bush. Dentro desse quadro, a noção de um mundo em perigo ronda a produção americana atual e os heróis estão em crise, como a dupla formada por Colin Farrell e Jamie Foxx no deslumbrante "Miami Vice", de Michael Mann. George Clooney compara a manipulação da mídia, por Bush, à era macarthista que confronta em "Boa-Noite e Boa Sorte", contando, como um exemplo a ser seguido, a história do jornalista que desmontou a farsa dos processos do senador McCarthy. Clooney, de novo, associado a amigos como o produtor Steven Soderbergh e o roteirista Steve Gaghan, promovido a diretor, critica em "Syriana" o mundo que a Casa Branca e o Pentágono gostariam de desenhar no Oriente Médio. Nele, o controle do petróleo passaria diretamente aos conglomerados que Bush representa (é a mesma tese de Michael Moore e Spike Lee). M. Night Shyamalan constrói dois filmes, "A Vila" e "A Dama na Água", para discutir esse assustador mundo novo. Em ambos, há um mundo isolado, refém de forças sinistras que manipulam corações e mentes, o que leva o diretor americano de origem indiana a exercitar o que gosta - a semiologia, ciência do signo. Como se conta um conto, como se libertam as mentes face ao advento do terror? "A Vila" não é tão bom, mas "A Dama na Água" é magnífico. E há o caso de Steven Spielberg. O mais hollywoodiano dos autores também era o mais democrático, tratando do mesmo jeito, como parques temáticos, os grandes e os pequenos temas, o Holocausto em "A Lista de Schindler" e a clonagem de monstros antediluvianos em "Parque dos Dinossauros". Os partidários do presidente Bush gostam de dizer que ele era um presidente apático que ficou grande na crise. Pode-se dizer o mesmo de Spielberg, mas no sentido da contramão de Bush. Nestes cinco anos grandiosos de sua carreira, Spielberg respondeu à crise com o dedo acusador de um democrata radical. Como a democracia virou hoje o mais relativo dos conceitos - sob Bush, só é democrático o que está em sintonia com os interesses dos EUA -, a intransigência por princípios de Spielberg possui uma dimensão verdadeiramente revolucionária. "O Terminal", "Guerra dos Mundos" e "Munique" compõem um bloco de extraordinária coerência contra tudo o que ocorre hoje nos EUA. A nação de emigrantes que renega suas origens; a escalada militar da paranóia; e o risco ético de se perder a alma no combate ao terror são tratados com lucidez e vertigem técnica e dramática no que já é uma das maiores trilogias da história do cinema. É bom poder falar bem, aqui, de um autor que parecia estar a ponto de perder-se. Há uma guerra da informação nos EUA. Sempre há o risco de uma volta de Rambo e Braddock, mas Hollywood já tomou partido. Michael Mann, George Clooney, Shyamalan e Spielberg, por maiores que sejam, não estão sozinhos. Shyamalan fala de esperança em "A Dama na Água". Há vida inteligente (e crítica) no aterrorizado pós-11 de Setembro.

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