Filmes de invenção, inteligência e bilheteria

Lista dos melhores tem obras do Brasil e do exterior, entre elas Batman, de Christopher Nolan, Não Estou Lá, de Todd Haynes, e Falsa Loira, de Reichenbach

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Por Luiz Carlos Merten
Atualização:

Há uma questão do mercado, grave e urgente, que faz com que o cinema brasileiro seja estrangeiro na própria casa. Os cinemas concentram-se em shoppings, áreas de grande consumo, às quais têm ascesso espectadores com maior poder aquisitivo. O ingresso e a localização, aliados da colonização cultural, favorecem não propriamente o cinema estrangeiro, mas o hegemônico. Ocorre que, técnica e esteticamente, o cinema brasileiro - e o asiático, o europeu - não são inferiores ao de Hollywood, que só é mais pirotécnico.   Veja também: Literatura: campeões de prêmios Revisionismo e reedições em ano fértil Artes visuais: o ano em que nada aconteceu Mercado de arte ainda longe da crise Música erudita: Vitória do intérprete   No recente Camerimage, o Festival de Lodz, na Polônia, que contempla a melhor fotografia - o festival técnico por excelência no mundo -, o Golden Frog, prêmio máximo, foi para o provável campeão de indicações para o Oscar em 2009 - Slumdog Millionaire, de Danny Boyle. O Silver Frog, o Sapo de Prata, veio para o fotógrafo brasileiro, embora nascido no Uruguai, César Charlone, por Ensaio Sobre a Cegueira, de Fernando Meirelles.   Nada de listas separadas, que apenas oficializam a segmentação de mercado. Quantas deveríamos ter? Uma dos melhores de Hollywood, outra das restantes cinematografias do mundo e uma terceira do Brasil? A própria discussão sobre documentário e ficção já é bizantina nesta época em que uma animação - a ?proustiana?, com seu tempo perdido e reencontrado, Ratatouille, de Brad Bird - foi o melhor filme do ano passado.   Para tornar mais complexa essa questão do mercado - e dos gêneros, das categorias -, o melhor filme do ano foi um filme de invenção (e de consumo de massa), aliás, o maior sucesso comercial do ano - Batman, o Cavaleiro das Trevas, de Christopher Nolan, que também trouxe a melhor interpretação masculina do ano, a de Heath Ledger, não importando que, tecnicamente, ele seja coadjuvante e não o protagonista. O melhor protagonista foi Viggo Mortesen, por Os Senhores do Crime, também o melhor David Cronenberg, mas neste caso, a localização do filme, numa lista de dez, estaria mais para os postos finais. Os grandes filmes de invenção do ano foram - Não Estou Lá, de Todd Haynes, com seus múltiplos retratos para traçar o perfil de um artista que é único e múltiplo, Bob Dylan; Rebobine, por Favor, um triunfo da inteligência e da estética de reciclagem de Michel Gondry; e um filme mexicano excepcional, Luz Silenciosa, de Carlos Reygadas, com o mistério daquela luz e da ressurreição que reinventa um dos maiores filmes, de um dos maiores autores do cinema, Ordet (A Palavra), do dinamarquês Carl Theodor Dreyer.   Do Brasil tivemos este ano dois grandes filmes, que, aliás, venceram por conceito e consenso, o prêmio da APCA, a Associação Paulista dos Críticos de Artes - Serras da Desordem, de Andrea Tonacci, e Linha de Montagem, de Walter Salles e Daniela Thomas, ambos beirando os limites entre documentário e ficção, discussão de resto antiga, pois já se encontra num clássico por volta de 1930, Tabu de Friedrich W. Murnau e Robert Flaherty, quando se uniram um grande diretor de ficção e um grande documentarista para criar uma obra extraordinária.   Por melhores que sejam, não se podem esquecer também Falsa Loira, o melhor Carlos Reichenbach (em anos), é verdade que valorizado pela sensacional Rosane Mulholland, e outro filme de difícil classificação, mistura de ensaio poético, documentário e ficção, Castelar e Nelson Dantas no País dos Generais, de Carlos Prates. Temos até agora nove filmes e a lista será de 11, não de 10, como reza a tradição. Você deve lembrar-se da polêmica que antecedeu e sucedeu ao lançamento de Desejo e Reparação. O diretor Joe Wright teria diluído o romance do escritor Ian McEwan. Ouça aqui um suspiro de cansaço. É como seguir discutindo documentário e ficção, animação e live action.   Desejo e Reparação é uma obra-prima de romantismo, mas Joe Wright, como François Truffaut, desconfia do próprio romantismo. O 11º é o mais improvável dos filmes de família - Um Conto de Natal, de Arnaud Desplechin, estreado ontem.   Outra maneira de escolher os melhores filmes do ano seria relacionar aqueles momentos do cinema de 2008 que, com certeza, passarão a integrar o imaginário dos cinéfilos. Toda obra de Christopher Nolan, e não apenas O Cavaleiro das Trevas, converge para a cena do andaime, quando ficam invertidos Batman e o Coringa. Aquilo não é só um tour de force técnico - é a reflexão de um artista sobre o cinema e o mundo (e o lugar que os super-heróis, como ícones, ocupam no nosso imaginário).   O vestido verde de Keira Knightley em Desejo e Reparação já entrou para a história do erotismo no cinema. As cenas de Cate Blanchett em Não Estou Lá, quando ela se transforma em Bob Dylan e chega mais perto, fisicamente, do cantor e compositor do que qualquer outro dos atores (todos homens) do filme de Todd Haynes, são assombrosas. O mistério de um homem decifrado por uma mulher.   E o que dizer da expressão de Rosane Mulholland no desfecho de Falsa Loira? A garota supera-se e o diretor Reichenbach, cinéfilo de carteirinha, sabe melhor do que ninguém a quem queria se referir (ou homenagear) por meio daquele olhar. Num ano em que o mercado, como um todo, encolheu - e para o cinema brasileiro, encolheu mais ainda -, não se pode deixar de destacar a importância de Meu Nome Não É Johnny, de Mauro Lima, com Selton Mello, o campeão de bilheterias nacional do ano. Selton é impecável, como sempre - e ele também estreou como diretor em 2008, com um filme autoral, mas não tão bom, Feliz Natal. A retrospectiva do ano não estaria completa sem referências a outros filmes (e atores) brasileiros.   Wagner Moura é prodigioso como o diretor de teatro e TV dentro de Romance, de Guel Arraes, e suas cenas com Letícia Sabatella possuem uma intensidade rara. Dane-se quem não percebeu, ou ficou perdido nesta outra discussão interminável, sobre o estilo ?televisivo? de um certo cinema comercial no País. Há, para encerrar, um momento breve de A Guerra dos Rocha, de Jorge Fernando, que nenhum crítico que ser preze colocaria entre os melhores do ano, mas beira a genialidade. É aquele em que Ary Fontoura, na pele da matriarca da família Rocha, recebe o verdadeiro dono do cadáver que está sendo velado na sala de sua casa. O homem irrompe aos prantos. Ary o consola.   Diz que o visitante perturbado perdeu a mulher, mas ele perdeu os três filhos. A cena dura o quê, momentos?, na tela. Não importa - o próprio Mario Monicelli, de Parente É Serpente, teria se levantado para aplaudir Ary Fontoura. Às vezes, bastam minutos, segundos, para que um filme fique com a gente.  

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