Filme ‘The Assistant' expõe rede que favorece abusos

Longa vai além de Harvey Weinstein e aponta as estruturas que permitem que o comportamento predatório continue

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Por Sonia Rao
Atualização:
Em 'The Assistant', a câmera foca na atriz Julia Garnernos 87 minutos do filme, que inclui poucos diálogos e não tem trilha musical. Foto: Ty Johnson/ Bleecker Street

Uma jovem chamada Jane se serve de uma tigela do cereal matinal Froot Loops no início de The Assistant, que estreia no Brasil em 26 de março, novo filme que conta um dia na vida de um funcionário sobrecarregado num estúdio de cinema. Ao contrário de outros aspectos da rotina de Jane, que inclui tarefas subalternas, como limpar as manchas deixadas pelo teste do sofá do seu chefe, e comer Froot Loops, não há informações sobre o comportamento tóxico que permeia o ambiente de trabalho. The Assistant está na mostra Panorama do Festival de Berlim e tem sua primeira exibição no domingo, 23.

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A diretora australiana Kitty Green optou por incluir o cereal por causa do colorido da caixa em contraste com o cinzento do escritório. Mas depois de o filme ser exibido num festival, a cena de repente ganhou importância. “Algumas pessoas me contaram que o Froot Loops era o único cereal que havia na Miramax”, disse Green ao Washington Post, referindo-se à companhia cofundada e dirigida por Harvey Weinstein.

Independentemente da intenção, as relações entre o chefe de Jane e Weinstein são muitas e inevitáveis, uma vez que o lançamento do filme coincide com o julgamento do magnata por abuso sexual em que ele se declara não culpado. Mas Green vai além da semelhança ficcional de Weinstein, apontando para as estruturas que permitem que esse comportamento predatório continue. O chefe de Jane, que no filme é anônimo, não aparece na tela.

“Sabemos o que acontece quando a porta é fechada. Já ouvimos essas histórias. O que me interessa é o que ocorre do outro lado da porta, o que as pessoas sabem, a cultura num ambiente como esse”, Kitty Green.

A câmera foca na atriz Julia Garner (de Ozark, da Netflix) nos 87 minutos do filme, que inclui poucos diálogos e não tem trilha musical. Ao mesmo tempo que mantém uma expressão estoica, Garner projeta inquietação e incerteza, consequências do seu trabalho num escritório em Manhattan durante dois meses - longos o bastante para Jane aprender como suportar a misoginia informal dos colegas de trabalho, mas pouco tempo para ela ainda confiar que o departamento de Recursos Humanos levará a sério suas queixas sobre seu chefe. Ou seja, até ela se dirigir de fato ao departamento. A cena mais perturbadora no filme é a de uma conversa entre Jane e um funcionário bajulador do RH, Wilcock (Matthew Macfadyen). Quando Jane fica sabendo que seu chefe instalou uma nova contratada, bela e inexperiente, num luxuoso hotel na vizinhança, ela pergunta por que nunca recebeu esse tratamento e se algo estaria ocorrendo. 

Sob pressão, Julia Garner é assistente de executivo de estúdio Foto: Ty Johnson/ Bleecker Street

Wilcock manipula Jane levando-a a acreditar que ela simplesmente está com inveja da nova contratada. Além do que, ele analisa, Jane nunca viu realmente alguma coisa acontecer. “Estaria ela querendo prejudicar sua carreira fazendo uma queixa tão vaga?” 

“Tenho consciência de que as pessoas vão ao RH achando que sua voz será ouvida e rapidamente percebem que o departamento existe para proteger a companhia e não os empregados. O argumento que Wilcock oferece a ela tem sentido. Ela não pode provar o que viu”, justificou Kitty Green. Segundo a diretora, quando se preparava para realizar o filme, conversou com pessoas que tiveram chefes tóxicos, predatórios, incluindo algumas que trabalharam na Weinstein & Co. Ela se baseou no padrão de mulheres que se sentem fragilizadas, ameaçadas ou ignoradas, que incorporou no roteiro.

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The Assistant é o primeiro filme narrativo de Kitty Green, embora ela considere seus trabalhos anteriores, definidos como documentários, “peças híbridas”. Seu filme mais recente, de 2017, Quem É JonBenet, é similar a The Assistant na abordagem do tema. Para explorar o caso sensacionalista da morte de uma criança de 6 anos que venceu um concurso de beleza, Kitty fez uma convocação de elenco na cidade natal da menina, Boulder, Colorado, para saber como os atores locais se sentiam anos depois do fato ocorrido.

Julia Garner é a primeira atriz com quem Kitty trabalhou bem de perto. Ela precisava de alguém “surpreendente” para interpretar Jane, diante do fato de ser tão comum a rotina da personagem; o trabalho de Julia no filme The Americans, da FX, convenceu-a a convidar Julia para um café. Ela não tinha ainda muitos detalhes sobre a personagem, assim as duas discutiram como elas retratariam “a experiência emocional de uma pessoa numa posição como aquela”.

Produzir o filme foi uma batalha árdua em si, mas Kitty teve ainda o desafio de apostar num projeto que criticava o seu próprio setor. No início, disse ela, encontrou várias executivas mulheres que “adoraram” o roteiro e prometeram mostrá-lo para seus colegas. Mas depois ela recebia e-mails de resposta, dizendo que os colegas, que Kitty achava que na maioria eram homens “haviam se recusado até mesmo a ler o roteiro”.

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Mas The Assistant foi em frente, avançando desde sua estreia mundial no Telluride Film Festival, depois a Bleecker Street adquiriu os direitos de distribuição, até Sundance, onde alguns dos alegados abusos sexuais cometidos pelo ex-magnata de Hollywood, Harvey Weinstein, ocorreram. 

Embora Kitty tenha ouvido falar que seu filme deixa alguns homens incomodados, ela tem sido incentivada pelas mulheres que chegam até ela para dizer que “se veem realmente descritas no filme”. “Quero que o máximo de pessoas no setor cinematográfico veja o filme. Se pudermos questionar esse comportamento e como ele tem persistido por tantos anos, então tenho esperança de que conseguiremos um avanço nas mudanças. Não tenho medo de exibir o filme em qualquer lugar.”

TRADUÇÃO DE TEREZINHA MARTINO 

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