Filme sobre Leonilson comove e vence o festival É Tudo Verdade

O diretor Carlos Nader se apoia em diário gravado para traçar a trajetória do artista plástico, morto de aids em 1993

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Foto do author Luiz Zanin Oricchio
Por Luiz Zanin Oricchio
Atualização:

A Paixão de JL, de Carlos Nader, sobre o artista plástico José Leonilson, foi o vencedor do 20º É Tudo Verdade. Nader, que havia recebido o principal troféu ano passado por Homem Comum, torna-se o primeiro bicampeão do principal festival brasileiro dedicado aos documentários. Além do troféu principal, A Paixão de JL levou o prêmio da crítica, promovido pela Associação Brasileira de Críticos de Cinema (Abraccine). Tal acúmulo não é tarefa das mais fáceis, ainda mais quando se leva em conta o alto nível de disputa do festival comandado criado e comandado pelo jornalista Amir Labaki. 

Na parte internacional, venceu A França é nossa Pátria, de Rithy Pahn, um estudo sobre o colonialismo francês na Indochina. O melhor curta brasileiro, para o júri oficial foi Cordilheira de Amora II, de Jamille Fortunato. Neste ponto, discordante da crítica, que preferiu Sem Título #2: La Mer Larme, de Carlos Adriano. 

Filme deCarlos Nader venceu o festival É Tudo Verdade Foto: Divulgação

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As premiações são indiscutíveis, dada a qualidade dos escolhidos. É pena, no entanto, que obra tão intensa como Orestes, de Rodrigo Siqueira, tenha ficado de fora. Trata-se de rara imersão na tragédia da violência brasileira, tanto a atual como a da época da ditadura militar, apoiada no texto clássico da Orestíade, de Ésquilo. Num momento em que vingança e revanche tornam-se palavras de ordem na sociedade brasileira, a lembrança desse marco civilizatório da justiça seria bastante oportuna. Mas o filme tem toda uma trajetória diante de si. Um grande festival também pode ser lembrado pelos filmes que não pôde (ou não quis) premiar. 

Em todo caso, tanto a qualidade quanto o impacto emocional provocados por A Paixão de JL tornam sua escolha bastante compreensível. Nader realiza um trabalho sensível, delicado e profundo sobre um legado de Leonilson – o registro, em gravador, de um diário íntimo iniciado em 1990. Leonilson narra o cotidiano do País (na época envolto no turbilhão da era Collor), traz reflexões sobre seu trabalho, a família e sua vida amorosa. Na parte final, tendo-se descoberto soropositivo, fala da dolorosa evolução da doença. A voz é entremeada, na tela, por imagens heteróclitas, de fatos do cotidiano ou de suas obras. Voz e imagens mesclam-se, levam o espectador ao rico e sofrido universo do artista. Um belíssimo filme. 

O tom político adensa-se em A França é Nossa Pátria, do franco-cambojano Rithy Pahn. O título poderia evocar uma louvação ao país dos direitos humanos, de Voltaire e Rousseau, da Marselhesa e da tríade Liberté, Egalité, Fraternité. Mas não. Irônico desde o princípio, Pahn traz de volta o nada glorioso passado colonial da nação francesa. Usa material de época, filmes mudos, “comentados” por cartazes que evocam o discurso colonialista. “Estamos lhes trazendo a civilização”, diz o cartaz, enquanto as imagens mostram a construção de escolas, igrejas e ferrovias, utilizando a mão de obra local. 

A arrogância e o senso de superioridade do colonizador são patentes. O outro, o colonizado, seus sentimentos, sua cultura, não contam para nada. Na parte final, com o início das guerras anticoloniais, o tom muda. Não há uma imagem forjada. Não há um discurso que não faça parte da mentalidade do colonizador. O contraste entre imagens e palavras desvela a brutalidade do colonialismo. Em especial quando ele é promovido em nome da “civilização” e dos “ valores ocidentais”. 

Carlos Nader e Rithy Pahn formam um par de vencedores que, por si só, já justificaria o festival. Mas houve muito mais. Além do não premiado Orestes, outros filmes, em competição ou fora dela, passaram pelas telas do É Tudo Verdade e deixaram ótima impressão. Como O que Houve, Srta. Simone?, de Liz Garbus, tocante evocação da rica e dilacerada trajetória da cantora Nina Simone. Ou Seguindo Nazarin, de Javier Espada, retorno às locações do clássico de Luis Buñuel, de 1959. Ou o urgente Cidadãoquatro, de Laura Poitras, vencedor do Oscar. Seu personagem, Edward Snowden, denunciou o esquema de espionagem mundial da CIA e da NSA (Agência Nacional de Segurança) dos EUA. 

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Não se pode esquecer que o É Tudo Verdade iniciou pela exibição de Últimas Conversas, filme póstumo de Eduardo Coutinho, morto ano passado em circunstâncias trágicas. Nesse testamento involuntário, o diretor de Cabra Marcado pra Morrer e Edifício Máster conversa com adolescentes e aspira à espontaneidade da infância. Muito ainda há de se falar e se escrever sobre essa obra-legado de Coutinho, cineasta divisor de águas no documentário brasileiro.

O É Tudo Verdade assinalou ainda os 80 anos do documentarista paraibano-brasiliense Vladimir Carvalho, promovendo retrospectiva dos seus filmes, debate sobre sua obra e lançamento de seu livro Jornal de Cinema

Para comemorar o centenário de Orson Welles, o É Tudo Verdade, que tira seu nome da obra inacabada de Welles no Brasil, trouxe o especialista Jonathan Rosenbaum, autor do fundamental ensaio Discovering Orson Welles. Na Cinemateca Brasileira, Rosembaum deu uma palestra inesquecível sobre o autor de Cidadão Kane. A parte reflexiva do festival foi muito interessante, com presença de estudiosos como Ally Derks, Thom Powers, Carlos Alberto Mattos e Fernão Pessoa Ramos. Fernão, autor de Mas Afinal, O que É Mesmo um Documentário?, tocou em ponto importante: a anarquia conceitual que tomou conta da discussão com a ideia de que a fronteira entre documentário e ficção estava abolida. 

As qualidades do É Tudo Verdade, tanto na escolha dos filmes quanto na programação da sua parte reflexiva, podem ser resumidas numa única palavra: curadoria. Enquanto outros festivais mudam de cara a cada ano, indecisos entre formatos e ênfases, este mantém-se firme em suas opções e linha curatorial. É avis rara em território nacional. 

Premiados
Competição Brasileira: 
Melhor Documentário Brasileiro de Longa ou Média-metragem – A Paixão de JL, de Carlos Nader
Melhor Documentário Curta e Prêmio Mistika – Cordilheira de Amora II, de Jamille Fortunato
Competição Internacional: 
Melhor Documentário Longa ou Média-metragem – A França é Nossa Pátria, de Rithy Pahn
Melhor Documentário Curta – Supercondomínio, de Teresa Czepiec
Menção Honrosa para Documentário Longa ou Média-metragem – Hora do Chá, de Maite Alberdi
Menção Honrosa para Documentário Curta – Urso, de Pascal Flörks

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