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Filme russo revela intimidade de Hitler

Por Agencia Estado
Atualização:

Cannes, 1999. O júri presidido por Martin Scorsese surpreende ao atribuir a Palma de Ouro a Rosetta, dos irmãos Dardenne, dois cineastas da Bélgica. Havia críticos apostando em Straight Story, o belo filme de David Lynch que a Lumière há quase dois anos promete lançar no País. E havia, ainda, críticos apostando que a escolha mais radical do júri seria dar a Palma de Ouro a Moloch, de Aleksander Sokurov. O filme estréia nesta sexta-feira. É impressionante, para dizer-se o mínimo. Você viu muitos filmes sobre o nazismo. Nenhum como esse. Sokurov trata Adolf Hitler como indivíduo. Filma-o na intimidade com Eva Braun. É sinistro. Sokurov não saiu sem prêmio de Cannes, embora não tenha recebido a cobiçada Palma. O júri, por sinal, atribuiu-lhe um prêmio um tanto discutível, o de melhor roteiro, pois a força de Moloch não está no roteiro e sim na direção, naquilo que os franceses chamam de mise-en-scène. Toda a riqueza e complexidade do filme está menos na estruturação das cenas e na armação dos conflitos do que no trabalho de direção que se opera dentro de cada cena, na maneira de enquadrar, posicionar e movimentar os atores, de usar o cenário e a cenografia, de usar o som, um trabalho realmente prodigioso no seu antinaturalismo. Começa com uma mulher que dança nua no que parece ser uma fortaleza. É uma fortaleza e a mulher é Eva Braun, a amante de Hitler. Logo chega o führer com seu séquito, para passar o fim de semana no castelo encravado nos Alpes. A corte do ditador é lúgubre. Dela participam Mengele e Goebbels, com a mulher, entre outras pessoas. O nazismo, você sabe, criou toda uma mitologia em torno da beleza e da perfeição físicas. Hitler e seus asseclas defendiam a eugenia, o extermínio puro e simples das chamadas raças inferiores. Não deixa de haver certa ironia no tratamento que Sokurov dá a seus personagens. Hitler e sua corte, com exceção de Eva Braun, não passariam no exame de admissão ao Reich. São horrendos, fisicamente, e as deformidades físicas não são outra coisa senão a expressão da deformação moral. Se você viu Mãe e Filho, o primeiro filme de Sokurov que a Mostra Internacional de Cinema trouxe a São Paulo, sabe que o diretor russo é atraído pelo tema da decrepitude física, que gosta de opor a um certo ideal de beleza. Assim, ele opunha a mãe ao filho e agora o führer a Eva Braun. Um corpo degenerado e outro livre. Ela é bela e sua dança assemelha-se à de Leni Riefenstahl, a deusa imperfeita que fez filmes que entraram para a história, mas que os críticos e historiadores repudiam por sua ligação com o nazismo. Um filme como Moloch é prato cheio para quem se dispuser a analisá-lo com as chaves de Freud. Isso nem é novo, mas no cinema ninguém foi fundo como Sokurov no tratamento de Hitler como um caso patológico. E, falando sobre o autor de Minha Luta e o nazismo, na verdade ele quer usar um caso tão particular quanto o de Hitler para falar sobre o inferno da miséria física e moral que pode aviltar a condição humana. Hitler não suporta que Eva Braun o veja nu. Não suporta a idéia da procriação e, por isso, logo ao chegar à fortaleza ele arma uma cena quando lhe apresentam o que seria belo para qualquer pessoa - uma ninhada de filhotes. Numa cena particularmente reveladora, Hitler afasta-se para defecar. Como um gato, cobre seus dejetos com areia, tudo visto a distância pelos olhos dos guardiães desse sombrio ninho de águias, os soldados que o diretor trata como blocos graníticos, transformando-os em objetos desse cenário desumanizado e esverdeado que é a fortaleza. Obsessões - Hitler brincando com suas fezes se assemelha a uma criança fascinada pelo próprio dejeto. Adi, como Eva Baun o chama, não come carne, odeia sua aparência. Os jornais filmados de atualidades o aborrecem, não sabe o que é Auschwitz, é obcecado pelo pútredo e pelo fóbico. Só o que o distancia dessas obsessões é o corpo livre de Eva Braun, mas assim mesmo ele não admite o contato físico com ela. Hitler e sua corte compõem um bando de degenerados que se afundam até o pescoço no cocô e é preciso dar à palavra toda a sua conotação agressiva, pois é o que Sokurov quer. Nunca houve uma corte tão contaminada quanto a desse filme. A banalidade do mal a que Hannah Arendt se referia ganha uma nova e definitiva dimensão. É um filme sobre o mal absoluto, sobre a corrupção do poder. Fala de guerra sem nunca ser explícito. Constrói-se no domínio da doença, pois o que Moloch propõe é a descrição nosográfica do ditador e seus áulicos. O próprio título é esclarecedor. Moloch refere-se ao deus destruidor da mitologia. A metáfora é clara. Sokurov identifica o nazismo, o próprio Hitler, com Moloch. A questão é - por que um filme desses? Porque Hitler foi o ditador mais monstruoso do século passado, tão pródigo em atrocidades. Nunca será demais exorcizá-lo. Mas também porque, projetando-se nele, Sokurov talvez esteja querendo fazer o retrato mórbido, masoquista e megalômano do próprio artista como demiurgo. Pois o tratamento antiilusionista de Moloch deixa claro que o comentário político do diretor não é só sobre Hitler e o nazismo. É sobre o cinema, também. Moloch - Eva Braun e Adolf Hitler na Intimidade (Moloch). Drama. Direção de Aleksander Sokurov. Rússia-Ale-Fr/99. Duração: 103 minutos. Cineclube Vitrine, às 14h10, 16 horas, 18 horas, 20 horas e 22 horas. 14 anos.

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