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Filme retrata todas as faces da detenção

Paulo Sacramento finaliza as filmagens de Prisioneiro da Grade de Ferro, em que os detentos do Carandiru discutem a problemática carcerária

Por Agencia Estado
Atualização:

Assim que a porta de acesso às muralhas da Casa de Detenção se abre, os presos confinados ao Pavilhão 9, logo em frente, manifestam-se aos berros. Coxinha é a palavra mais ouvida, seguida de outros palavrões impublicáveis. Os xingamentos têm endereço certo. Eles são dirigidos aos policiais de guarda e ao sargento que acompanha a equipe de filmagem do documentário Prisioneiro da Grade de Ferro, comandada por Paulo Sacramento. Logo depois, os outros participantes do grupo serão brindados com adjetivos mais ou menos fortes, dependendo do destinatário. O jovem cineasta paulistano, diretor dos curtas Ave e Juvenília, e montador, entre outros filmes, de Cronicamente Inviável, visita a prisão quase semanalmente desde janeiro. E registra tudo, sem censura. É o último dia de mais uma fase das filmagens de Prisioneiro da Grade de Ferro. Sacramento e sua equipe deveriam entrevistar o diretor da Penitenciária 3 e filmar toda a extensão das muralhas externas, mais um pedaço das que serpenteiam internamente entre os pavilhões. A entrevista não aconteceu. Os internos do Pavilhão 9 ficaram trancados o dia inteiro, o que resultou num clima de muita instabilidade. Restou aos documentaristas percorrer quase um quilômetro e meio no alto dos muros que envolvem a prisão. "Aqui em cima é bem pior do que lá embaixo", avisa Sacramento, em meio à tomada de uma cena. "Quando estamos entre os presos, somos considerados como parte deles; mas no alto da muralha estamos em território do inimigo." Esse é apenas um dos aspectos que serão abordados no filme, um projeto que nasceu em 1996 e, de lá para cá, passou por várias transformações. A idéia inicial era perfilar os bandidos famosos, alguns dos quais se tornaram personagens de filmes, como João Acácio Pereira (Bandido da Luz Vermelha) e Chico Picadinho (Ato de Violência). Sacramento entrevistou longamente João Acácio. Falou com o lendário Bandido da Luz Vermelha no penúltimo e último dias de sua longa estadia na prisão. Filmou tudo em película. São algumas horas de depoimento. E não só. "Tenho um baú cheio de cartas dele", avisa. Mas esse material não deverá ver a luz do sol. Não em Prisioneiro da Grade de Ferro. Há dois anos, Sacramento mudou radicalmente o projeto. Abandonou a idéia dos bandidos famosos para centrar foco na Casa de Detenção e em seus ocupantes anônimos. Também esteticamente fez uma revolução: trocou a película pelo suporte digital. "O vídeo facilita muito mais as coisas, faz a gente chegar discretamente em lugares onde as câmeras maiores não entram despercebidas." Para se aproximar dos detentos, o cineasta montou um curso de cinema e vídeo. Queria uma classe heterogênea, com alunos de todos os pavilhões. Não foi fácil. Muitos recusaram aparecer com medo de que a exposição na tela fizesse surgir novos delitos e aumentasse suas penas. "Foi um sacrifício achar gente do 8 (reincidentes) e do 9 (primários)", lembra. Durante quatro meses, a partir de janeiro deste ano, Sacramento e sua equipe deu aula diariamente para 20 detentos, ensinando a eles fundamentos da arte cinematográfica e ajudando-os em exercícios que poderão ser incorporados ao trabalho final. O resultado, segundo ele, foi surpreendente. "Tem coisas que eles fizeram que são muito melhores do que as nossas", arrisca. Exemplos não faltam. Marcos, preso no Pavilhão 7 por porte ilegal de armas, e Joel, que cumpriu pena por falsificação, foram responsáveis por um dos melhores exercícios da turma. Eles registraram em vídeo a noite de um detento, do momento em que é trancado, no final da tarde, até a hora que sai da cela, logo de manhã. Com autorização da direção do presídio, eles revelaram o que se passa entre as quatro paredes de uma cela durante aquele período crítico, tendo como único horizonte o guichê da porta de ferro e a janela gradeada. Houve até quem arriscasse uma ficção, caso do pastor Adeir. Responsável pela conversão de muitos detentos viciados em drogas para a religião, ele resolveu transformar suas experiências em um pequeno drama. No seu filme, um detento viciado em drogas, endividado e marcado para morrer, encontra a salvação na religião. O pastor usou seus companheiros de congregação dentro da cadeia como atores. Prisioneiro da Grade de Ferro não será só um veículo para a expressão dos presos. Haverá um contraponto, mediado pelo olhar do diretor e sua equipe. Diretores, ex-diretores, integrantes do poder público, do setor de Direitos Humanos e uma série de outras atividades ligadas ao setor carcerário no País também darão seus depoimentos. O filme abordará ainda vários outros assuntos relativos à Casa de Detenção, como o massacre dos 111 presos há quase dez anos, a influência do PCC, a transformação da estrutura do presídio em três unidades penitenciárias com direções independentes, a possibilidade de desativação do local. Sacramento tem ao todo 160 horas de imagens captadas. No momento, o diretor está revendo todo o material. Faltam apenas oito horas para terminar. Em seguida, começa o trabalho de montagem. Está em dúvida se usa sua experiência como montador para dar acabamento ao filme ou chama alguém para auxiliá-lo. "Como montador, sei o que alguém que vai assumir essa função precisa saber", diz ele. "Como nem eu sei o que dizer, prefiro esperar um pouco." Orçado em cerca de R$ 500 mil, Prisioneiro da Grade de Ferro teve patrocínio da Nossa Caixa Nosso Banco, Itaú Cultural e o Governo do Estado de São Paulo. Segundo as previsões de Sacramento, a montagem deve se estender durante cinco meses. O filme será finalizado em vídeo digital e kinescopado para lançamento em cinema. A previsão é que esteja nas telas no final de 2002. Em tempo: por que os policiais que guardam o presídio são chamados pelos presos de "coxinha"? A explicação, de um dos integrantes da equipe de filmagem, faz sentido. Quando estão trabalhando na rua, os policiais militares recebem uma espécie de vale-refeição para gastar nos estabelecimentos da cidade. É apenas uma ajuda de custo, que nas lanchonetes vale uma coxinha. Por isso, o apelido.

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