Filme ‘Raiva’ capta todo o desalento do romance ‘Vidas Secas'

Diretor Sérgio Tréfaut fala sobre a influência de obra de Graciliano Ramos em seu longa sobre a luta pela sobrevivência e dignidade

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Por Luiz Carlos Merten
Atualização:
Filme 'Raiva' se passa nos anos 50, mas tema se mantém atual Foto: Pandora Filmes

Filho de pai português e mãe francesa, Sérgio Tréfaut nasceu em São Paulo, mas criou-se em Portugal. Virou cineasta português. Convidado a realizar o filme da candidatura dos cantos de mineiros do Alentejo a patrimônio da humanidade, descobriu, na fase de pesquisa, o romance de Manuel da Fonseca, Seara de Vento.

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“Fiquei tomado pelo livro, pelos personagens. Resolvi adaptar, mas trocando o título. Seara de Vento tinha muito a cara de novela da Globo, de Selva de Pedra, que foi a novela da minha infância.”

Raiva estreou na quinta, 7. Na quarta, houve o encontro do cineasta com o público, no evento Estadão/Belas Artes. “O livro baseia-se em fatos ocorridos nos anos 1930. Um gajo matou dois homens e foi caçado pela guarda e pelo Exército. O cerco foi transformado em folhetim por jornais populares. Quando ele foi morto, multidões acorreram ao enterro.” O livro foi proscrito pela ditadura portuguesa e só depois da Revolução dos Cravos, nos 70, virou obra de culto e referência.”

Tem uma pegada de Vidas Secas, o clássico de Graciliano Ramos filmado por Nelson Pereira dos Santos. “Vidas Secas me marcou e influenciou muito. A fome, essas vidas duras. Mas o filme de Nelson tem aquela luz, e eu via o meu muito mais sombrio. A casa como uma caverna. A trama, arquetípica, como um resquício medieval.” Outra referência – decisiva – foi o poema revolucionário de Alexander Dovjenko, Terra.

“A primeira linha do roteiro já esclarecia que seria em preto e branco. ‘Ninguém vai ver’, diziam os produtores franceses. Cheguei a fazer alguns testes em cores, mas o livro me parecia escrito em preto e branco. Seria traição.”

Manuel da Fonseca amava os westerns. Via a revolta de Palma, o protagonista, como a de um individualista, tipo o caubói solitário. “Só a descrição do tiroteio consome umas 30 páginas. Manuel cria um relato mítico. Eu simplifiquei e desmontei a história. Começo pelo fim, e depois volto ao começo.”

Para o papel de Palma, ele pensou alto – Javier Bardem. “Houve interesse, mas também um impasse. O filme teria de ser em inglês, ou espanhol. E eu não conseguia ver o Palma dublado. Terminei optando por um não profissional. Hugo Bentes cantava no coro dos mineiros de Alentejo, Alentejo. Sua estampa era tão impressionante que o transformei no cartaz do filme. Depois, ele me confessou que a história poderia ser a do pai dele.”

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Tréfaut não gosta de falar em ‘método’. “Ninguém é mais intuitivo que eu.” Mas ele mistura profissionais e não profissionais. O filme tem até Leonor Silveira, a aristocrática intérprete de Manoel de Oliveira, no papel de uma esfomeada mulher do povo. Isabel Ruth, uma Jeanne Moreau portuguesa, faz a avó. E o filho autista, que se arrasta pelo chão, é um garoto saudável que adora uma pelada (de futebol).

“O Sérgio fez um trabalho muito interessante de integração do elenco. Minha personagem tem algo de bicho acuado numa armadilha. Ele sabia levar a gente a esses limites, e tirou o melhor de cada um, independentemente da origem”, relatou Leonor, numa entrevista por telefone. “É muito diferente do Manoel (de Oliveira). Manoel foi meu mestre. Fiz 19 filmes com ele. Comecei menina, terminei mulher feita, e mãe. Moldou-me, como mulher e atriz.”

Para o diretor, seu filme é ‘fora de moda’. “Quando mostrei o Raiva em Cannes, me perguntaram porque não havia transposto a história para os dias atuais. Era tudo o que não queria. Creio que há um preconceito com o filme histórico. As pessoas temem que vá virar telefilme da BBC.” Durante todo o processo, sua norma era ‘menos’. “Construímos tudo, a casa, a árvore seca. A diretora de arte me propunha uns adereços e eu tirava tudo. Queria o filme sem artifício. Acho que vem daí sua força, e universalidade.” 

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