Filme 'O Homem Cordial' expõe o Brasil na época dos linchamentos virtuais

Com atuação potente do ex-Titãs Paulo Miklos, ficção refuta a existência de uma possível cordialidade brasileira, no tempo da internet

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Foto do author Luiz Zanin Oricchio
Por Luiz Zanin Oricchio
Atualização:

O Homem Cordial toma o capítulo clássico de Raízes do Brasil, de Sérgio Buarque de Holanda, mas apenas para efeito de ironia. A ideia é mostrar como a “cordialidade”, no sentido mais popular, anda longe do ethos brasileiro contemporâneo. Sérgio Buarque usava o termo para explicar porque somos movidos mais pelas paixões que pelas relações formais. Parecia que estava dizendo que o brasileiro era bonzinho. Ele mesmo falava em “lhaneza do trato”, uma bonita expressão. Mas o diretor Iberê Carvalho, toma a ideia ao pé da letra para aplicá-la a uma história que tem como protagonista o ex-Titãs Paulo Miklos, no filme exibido durante a 43.ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo.

Paulo Miklos é Aurélio Sá, roqueiro falido que defende jovem e acaba sendoperseguido na internet Foto: O2 Play

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Miklos é Aurélio Sá, roqueiro dos anos 1980 que caiu no esquecimento. Seu empresário tenta uma volta aos palcos de shows. Mas os planos desandam quando Aurélio interfere na tentativa de linchamento de um menor suspeito de haver furtado um celular. Ele toma a defesa do menino, que consegue fugir. Aurélio é filmado por um desses grupos protofascistas que hoje proliferam no Brasil e as imagens viralizam na rede. O vídeo é turbinado pelo fato de um policial ter sido morto ao tentar perseguir o suposto ladrão. Aurélio ganha fama de “protetor de bandidos” e vê sua vida transformada em inferno, como se fosse cúmplice do assassino do policial. No nada cordial e muito menos inteligente Brasil de hoje basta você defender os direitos humanos para ganhar o rótulo de protetor de bandidos. 

Miklos é um ator potente, como sabe todo aquele que o segue desde sua estreia em O Invasor, de Beto Brant. A odisseia do seu personagem pela periferia paulistana parece às vezes o clássico Depois de Horas, de Martin Scorsese. O Homem Cordial tem essa referência. Mas a pegada do filme é mais humanista. Leva à história a denúncia da utilização das redes para demonizar opositores e também a violência policial, cujo alvo preferencial, como sabem todos, são indivíduos pobres e pretos.

A longa noite de loucuras de Aurélio abre outra vertente para este filme de muitas camadas. Ao procurar pelo menino desaparecido, ele retoma o contato com um antigo parceiro de grupo, o rapper Thaíde. Este abriu um bar na periferia, que acolhe jovens talentos negros, inclusive uma praticante de Slam. Ela convida Aurélio para um desafio e este fica calado diante dos versos eloquentes da moça, que falam da discriminação racial. É como uma revelação, à qual ele não pode e não deve responder – o momento é de calar e ouvir o que o outro tem a dizer. É o que mais nos falta no momento presente de polarização, em que cada um fala consigo mesmo ou com o grupo que pensa igual. 

Beco

No debate sobre seu filme, Camilo Cavalcante, disse que prefere retratar as pessoas marginais do que as bem-sucedidas. Desse trabalho com as bordas da sociedade nasce o surpreendente Beco, filmado no bairro de Afogados, em Recife. O nome do bairro já é significativo. Lembra dos escravos que tentavam atravessar o rio para fugir a nado e morriam. Esse filme fala dos afogados da sociedade contemporânea. 

Filmado no bairro dos Afogados, em Recife, o 'Beco' tem história contada ao longo de dois anos de filmagens Foto: Aurora Cinema/ Mostra Internacional de Cinema de São Paulo

Trata-se de um trabalho observacional, feito ao longo de dois anos nessa viela com bares populares, nos quais se mistura todo o tipo de gente. A câmera busca os ferrados pela vida. Como aquele que chora ao vestir a camisa do Sport Clube do Recife, seu time de coração. Ou o cego que conta suas desditas, fazendo piada com a própria desgraça. Ou, ainda, o personagem chamado Cícero, que conta uma história mais triste do que a outra e, no fim, proclama que tudo aquilo é mentira. 

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De longe, é o personagem mais marcante, em meio a um conjunto de pessoas muito interessantes. Isso porque questiona as próprias fronteiras entre realidade e ficção, entre verdade e mentira. É muito possível que, fabulando, Cícero fale mais sobre si do que se dissesse uma verdade velada pelo pudor ou pela discrição. Dando a palavra a esses narradores populares, Beco fala, por sua boca, da profunda injustiça social e do modo brasileiro de enfrentá-la. 

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