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Filme narra saga de bandido irlandês

Por Agencia Estado
Atualização:

A concepção visual do filme previu-o em preto-e-branco. Mas as cópias que você vai alugar serão em cores. O General, de John Boorman, chegou a ganhar um prêmio de direção em Cannes em 1998. Nem por isso os distribuidores se animaram, de modo que a obra chega em vídeo, lançamento da Filmark, sem passar pelos cinemas. Além disso, vem só a versão colorida. Atenção: não se trata de colorização, aquele procedimento espúrio que já jogou no chão títulos tido como clássicos do tipo Casablanca e O Falcão Maltês. Boorman filmou em cores mesmo. Mas revelou o material em P&B. Por capricho? Não. Porque achava que deveria usar o monocromatismo dos antigos filmes policiais para contar a história do ladrão irlandês Martin Cahill, que existiu de verdade. Como essa decisão do diretor não foi respeitada, alguma coisa do impacto de O General vai se perder. Não tudo, porque a história é ótima, muito bem interpretada e dirigida, e portanto resiste a deformações de mercado. O surpreendente Brendan Gleeson interpreta Cahill, bandido cheio de idiossincrasias saído dos guetos de Dublin. Desde cedo ele já revela sua predileção pelas posses do alheio e, na juventude e maturidade, só faz aperfeiçoar a vocação precoce. Foi, pelo que conta a lenda irlandesa, uma espécie de Robin Hood dos tempos modernos. Roubava em grande escala e parte do, digamos assim, lucro obtido era aplicada na sua comunidade de origem. Boorman não é um diretor de amenidades. Tem em seu currículo títulos como Inferno no Pacífico, Esperança e Glória e Amargo Pesadelo. Este último, em especial, é digno de nota. Mostra as desventuras de um grupo de amigos que resolve passar um fim de semana no campo e enfrenta a violência da turma do interior. Qualquer ilusão idílica sobre a vida em contato com a natureza é feito em cacos por esse filme feroz. E é também com certa ferocidade que Boorman se aproxima da biografia de Cahill. Esse homenzarrão desengonçado é mostrado em sua fragilidade humana, mas também em sua brutalidade. É capaz de gestos de carinho com os filhos, e também está pronto a torturar selvagemente um parceiro suspeito de traição. É tão debochado que chega a dormir na delegacia de polícia para arrumar um bom álibi. Cahill, além disso, é flagrado em sua original intimidade familiar: vive, maritalmente, com duas irmãs que parecem se dar muito bem e não mostram um pingo de ciúme uma da outra. Como todo bom filme de gênero, o de também Boorman capricha nas cenas de assalto. Dois deles são notáveis, como o furto de uma joalheria e depois o de uma casa, de onde ele retira o único Vermeer em posse de um particular. Calhill afeiçoa-se à tela do holandês, mas à sua maneira grosseira. Há um detalhe a ser retido: repare bem como as cenas filmadas por Boorman são diferentes das do cinema de ação convencional. Note como parecem verossímeis, veja que o medo e a tensão se incluem no quadro pintado pelo cineasta. Ou seja, são cenas humanas. O mundo descrito é o do crime. Mas esse mundo é habitado por homens e mulheres, de carne e osso. São tipos humanos, não caricaturas. E se como estilista de tipos Boorman é bom, fica melhor ainda quando vai além dos limites do gênero escolhido. É muito interessante, por exemplo, o relacionamento de Cahill com Ned Kenny (Jon Voight), policial e seu amigo de infância. Ned faz o possível para atormentar a existência de Cahill, mas ao mesmo tempo é perceptível a admiração que nutre por ele. Seu esforço sobre-humano para prender o ladrão amigo é como uma homenagem que a lei presta ao crime, um tributo da virtude ao vício. Pode não ter acontecido exatamente desse jeito, mas o relacionamento complexo entre os dois amigos e rivais dá uma bela densidade psicológica ao filme.

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