Filme mostra os campos de concentração dos flagelados da seca no Nordeste

'Currais’, que será exibido hoje na Mostra de Cinema de Tiradentes, lembra a história de vítimas da seca de 1932 que eram presas e obrigadas ao trabalho escravo

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Foto do author Luiz Zanin Oricchio
Por Luiz Zanin Oricchio
Atualização:

Já houve campos de concentração no Brasil? Sim. Num país com desprezo atávico por sua população, em especial a mais pobre, até isso já tivemos. É o que mostra o documentário Currais, da dupla cearense Sabina Colares e David Aguiar, que será exibido hoje às 18h na Mostra de Cinema de Tiradentes

O longa, que usa técnicas ficcionais para falar desses fatos vergonhosos, situa historicamente a questão. Os Estados do Nordeste foram atingidos por grandes secas, particularmente em 1877, 1915 e 1932. Ao longo da terrível estiagem de 1932, governos estaduais e o poder central decidem que o problema dos retirantes seria resolvido pela construção de campos, onde eles ficariam compulsoriamente “hospedados” e prestariam serviços à comunidade. O filme foi fundamentado no livro Isolamento e Poder: Fortaleza e os Campos de Concentração na Seca de 1932, da professora de História Kênia Souza Rios.

Cena do documentário 'Currais' Foto: Mostra de Tiradentes

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O interventor do Ceará ordenou a construção de cinco desses campos no interior e dois na capital, que deram origem a bairros periféricos atuais. Nessas áreas de concentração, morreram milhares de pessoas (crianças eram as principais vítimas). Eram obrigadas ao trabalho escravo e viviam subnutridos. O objetivo dos campos era impedir a chegada de uma horda de famélicos às cidades, cujas populações, como a de Fortaleza, viviam apavoradas, receando saques e tumultos. Eram chamados de “currais do governo”. 

A estratégia do filme é revelar esses fatos atrozes através de um misto de documentário e ficção. O ator Rômulo Braga interpreta Romeu, que viaja em sua Kombi atrás de vestígios dos campos de concentração. Romeu seria neto de um desses flagelados, e vai atrás de suas raízes. No caminho, entrevista pessoas, ouve o que elas sabem ou ouviram dizer do assunto e consegue conversar com a última sobrevivente de um desses currais de gente. 

O filme tem ótimos momentos, em especial por alguns depoimentos e o material iconográfico disponível. Esse material não é nem vasto nem muito acessível porque, compreensivelmente, as autoridades resolveram passar a borracha sobre esses fatos infames. Uma cortina de silêncio caiu sobre os “currais”, mas, como se sabe, tudo nesse mundo deixa vestígios. Sobram construções abandonadas, um resto de estrada de ferro, lembranças, papéis guardados numa gaveta e até a presença de “fantasmas” dos mortos, na expressão assustada de um sertanejo. 

Há também as fotografias impressionantes dos flagelados reunidos, a olhar para a câmera – ou seja, para nós. Lembram muito as poucas imagens que restaram dos habitantes de Canudos, essa outra tragédia social que havia acontecido uns 30 e poucos anos antes, no fim do século 19 e na aurora da República. O País não aprende. 

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