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Filme mostra Brasília além do cartão postal

Rua 6, sem Número, de João Batista de Andrade mostra as desigualdades sociais no coração do Brasil. O ano que vem o cineasta lança o filme, um livro e uma peça de teatro

Por Agencia Estado
Atualização:

- Foi durante a rodagem de O Cego Que Gritava Luz, no Distrito Federal. João Batista de Andrade descobriu, no coração do Brasil, a súmula das desigualdades sociais do País. Há uma Brasília oficial, aquela dos cartões postais, do Eixo Monumental, do Palácio do Planalto, e outra, nas chamadas cidades-satélites, que parece concentrar a desolação das mais miseráveis cidades brasileiras. Foi assim, de maneira quase inconsciente, que começou a tomar forma o roteiro do que viria a ser Rua 6, sem Número. É o novo filme do diretor. Está em fase de conclusão. Batista coloca atualmente a música. Em março espera estar com a primeira cópia pronta. Um filme em conclusão, outro em captação e um romance nas livrarias. Este fim de ano está sendo muito produtivo para o mineiro (de Ituiutaba) que começou a carreira de cineasta e escritor na Escola Politécnica da Universidade de São Paulo. Entre os seus filmes, há obras realmente importantes, como O Homem Que Virou Suco e A Próxima Vítima. Paralelamente à carreira como diretor, Batista desenvolve a de escritor. O primeiro livro, Perdido no Meio da Rua, do fim dos anos 80, remonta a textos de ficção que ele escreveu durante o golpe de 1964. Vieram depois o juvenil A Terra do Deus Dará e Um Olé em Deus. Batista lança agora, pela Editora da Universidade de São Carlos, Portal dos Sonhos. E se você acha que é muita coisa exercitar-se em todos esses meios, surpreenda-se mais um pouco: ele conclui sua primeira peça de teatro, Uma História Familiar. Sonho assassinado - De alguma forma, todos esses filmes, livros e peças tratam do mesmo tema: o sonho assassinado da geração de Batista, que queria mudar o mundo e assistiu ao fim das utopias. O protagonista de Portal dos Sonhos, Alex, assassina o próprio sonho para sobreviver num mundo que lhe é cada vez mais hostil. Mas o livro não chega ao fim sem que Alex perceba que carrega o sonho com ele e ainda o repassou para a filha, Beatriz. Essa idéia de um sonho impossível, mas que teima em resistir, também atravessa Rua 6. Solano é o personagem principal. Interpretado por Marco Ricca, ele abandona o emprego logo na cena inicial. Não se adapta ou não quer adaptar-se ao computador. Permanece na máquina de escrever, mesmo que isso signifique ser alijado do mercado de trabalho. Desempregado, com a mulher grávida, Solano ganha a rua em busca de dinheiro. Testemunha um assassinato. A vítima, antes de morrer, lhe repassa um monte de dinheiro para entregar a uma certa Marina, que mora na Rua 6. E morre antes de completar a informação. Solano descobre que há muitas ruas 6 na imensidão de Brasília. Nas superquadras, nas cidades-satélites ao redor da capital. Tentando achar o endereço incompleto, a Rua 6 sem número, ele testemunha outra morte, encontra a mulher que procura e faz descobertas que o surpreendem. Tudo parece verdadeiro e, ao mesmo tempo, as pessoas morrem e ressuscitam, desaparecem e reaparecem. Batista faz uma aposta arriscada. "Queria investigar como anda o imaginário do espectador brasileiro", explica. E, por isso, fez esse filme singular. Pode ser que Rua 6 ainda carregue um pouco dos defeitos narrativos e estruturais que entravaram O Cego Que Gritava Luz. Mas é, mesmo visto numa cópia de trabalho, ainda incompleta, mais interessante do que os filmes recentes de Batista - mais, até, do que O Tronco, que também já era melhor que O Cego. Há cenas admiráveis. Na melhor delas, justamente a do assassinato, Solano olha o assassino e a vítima, o garoto e o velho marreteiro, e é como se visse seu passado e o seu futuro. Como nada é o que parece ser em Rua 6, mais tarde essa cena, e esses personagens, ganharão novos significados, na evolução da narrativa. Metáfora - Logo no começo, a câmera passa sobre uma fila de máquinas de escrever de todos os tipos. O espectador não entende direito o que aquilo quer dizer. Parece meio surreal. A explicação também virá mais tarde. Tem a ver com essa recusa do computador por parte de Solano. Não é que ele não seja capaz de ingressar nos novos tempos computadorizados. Solano não quer. Existe aí uma metáfora. Brigando pelo mercado, Batista insiste num cinema brasileiro autoral e artesanal, um cinema representado pela máquina de escrever, em oposição ao modelo desenvolvido e computadorizado, que poderia ser o hollywoodiano, o cinema hegemônico, que tanto aposta nos efeitos especiais. Batista poderia repetir, como Almodóvar: "O único efeito especial que me interessa é o rosto humano." Na sua proposta de investigar o inconsciente do espectador de cinema do País, Batista não se impôs nenhum limite. Os limites vieram depois, por conta da produção de baixo orçamento. Rua 6 custou R$ 790 mil. Por medida de economia, foi feito em vídeo digital. Numa cena, em visita ao que não deixa de ser uma favela, Solano devia encontrar uma girafa. Saiu assim, desse jeito, no roteiro que Batista escreveu. Solano topava com a girafa, sem que existisse uma explicação racional para isso. A explicação teria de vir depois, por conta do próprio espectador. Mas a girafa lhe faltou. Ele não encontrou uma, sairia caro trazer uma girafa de longe. A idéia foi abandonada. Batista define o próprio filme ou define o protagonista, Solano. "Ele rejeita o mundo, tal como lhe é oferecido ou se lhe apresenta, e tenta construir outro, imaginário; como sempre ocorre nesses casos, a imaginação entra em choque com a realidade." Permanência da utopia - Esse tema, o sonho, a permanência meio desesperada da utopia, reaparece no novo filme, para o qual Batista busca recursos, por meio das leis de incentivo, baseadas na renúncia fiscal. Agora é a época. Com base no cálculo do imposto devido, as empresas calculam o quanto poderão investir em projetos culturais. O quanto e em quais projetos. Veias e Vinhos baseia-se no romance de Miguel Jorge, que recebeu, há anos, o prêmio da APCA, a Associação Paulista dos Críticos de Arte. O livro cobre 40 anos da vida política brasileira no século passado. Trata do golpe militar, da repressão que a ele se seguiu. "Expressa sentimentos que conheço bem: a vontade e a necessidade ética de participar, o medo das conseqüências disso, a repercussão na vida familiar, a brutalidade da repressão." Veias e Vinhos será feito em película. Até por cobrir um período extenso, envolvendo reconstituição de época, é um filme mais caro, cerca de R$ 2,3 milhões. Batista está em captação desde o ano passado. Já captou cerca de 30%. Banespa, Nossa Caixa e a TV Cultura são os investidores já comprometidos. Espera captar pelo menos mais 30% neste fim de ano. "Com 60% captados, já posso filmar", explica. Marcos Palmeira poderá ser o protagonista. "Já conversamos e ele está interessado. Tudo vai depender de ele estar disponível na época da filmagem. Depende da captação, mas gostaria de filmar no segundo semestre do ano que vem, após a estréia do Rua 6." Duas vezes presidente da Associação de Cineastas de São Paulo, presidente da Cinemateca Brasileira, Conselheiro do Museu da Imagem e do Som de São Paulo e coordenador geral do Festival Internacional de Cinema e Vídeo Ambiental (FICA), na sua primeira edição, na cidade de Goiás, em 1999, Batista é a prova de que, nestes tempos de globalização, com seu incentivo ao individualismo, ainda há gente que acredita em projetos coletivos. Não por acaso, preside duas entidades não governamentais de cinema e meio ambiente: o Instituto de Cultura e Meio Ambiente, Icuman, em Goiás, e o Instituto do Homem, Audiovisual e Meio Ambiente de São Paulo, o Cinemar.

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