Filme expõe distâncias sociais da Itália moderna

Estréia nesta sexta Prefiro o Barulho do Mar, filme que retoma o diálogo com o cinema neo-realista e mostra a Itália de hoje para além dos cartões-postais

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Por Agencia Estado
Atualização:

Não deixa de ser interessante que logo no finzinho do ano cheguem ao circuito dois filmes europeus, um da França outro da Itália. Sob a Areia, de François Ozon forma um contraponto interessante com Prefiro o Ruído do Mar, do italiano Mimmo Calopresti, um desconhecido no Brasil, exceto para os freqüentadores da Mostra de Cinema de São Paulo, quando esse quarto longa-metragem de Calopresti foi apresentado em algumas sessões. Chega agora ao circuito e pode interessar a espectadores cansados da mesmice do cinemão. Como sugere seu título, trata-se de um filme em tom menor. A história é singela. Um homem (Silvio Orlando) traz um rapaz que teve sua mãe assassinada para morar com ele e seu filho adolescente. O garoto morava numa pequena cidade à beira-mar e deve se mudar para uma cidade grande. É razoavelmente bem recebido pelo homem e por seu filho, mas tem dificuldades de adaptação. No fim, sente saudade do seu "paese" natal e vem daí a frase que dá título ao filme. Só isso. Só e no entanto se você quiser ter um primeiro contato com a Itália contemporânea, quer dizer com o país real e não o de cartão-postal, o filme é este. Calopresti trabalha no mais estrito realismo, tendência que se pode observar em boa parte da produção italiana (pelo menos aquela que se consegue ver em festivais e mais um ou outro título que consegue furar o bloqueio e chegar até nós). Como se tentassem uma volta às coisas mesmas, ou procurassem retomar um diálogo interrompido com a sua melhor tradição, o neo-realismo que nasceu no após-guerra e se transformou em uma das mais influentes escolas cinematográficas da modernidade. A título de lembrete: o Cinema Novo brasileiro começa por reciclar o neo-realismo italiano para as condições brasileiras antes de partir para uma linguagem própria. Por isso, Calopresti, em entrevista durante o Festival de Havana, disse espontaneamente que sua melhor referência seria o cinema brasileiro. Era, de certa forma, como se o círculo se fechasse. O neo-realismo influencia o Cinema Novo e este, tantos anos depois, deixa sua marca na retomada do realismo na Itália. Muitas vezes a cultura avança por meio dessas interferências cruzadas. Dessa hibridação nasce o novo. No caso de Calopresti, conhecem-se as fontes. A opção é clara e faz-se pelo povo miúdo, a gente pobre, sempre à margem de qualquer tipo de milagre econômico, independentemente da latitude ou longitude em que ele se produza. Há também a tensão entre a cidade pequena e a metrópole, tantas vezes explorada em clássicos do cinema italiano como Rocco e Seus Irmãos, de Luchino Visconti. De Visconti, Calopresti retém a simpatia pelos excluídos, mas não o pathos operístico. Prefere trabalhar no minimalismo, como se a atmosfera contemporânea não comportasse nada de muito grandioso, nem mesmo o drama. Mas, na verdade, o que se repõe nesse caso é a grande cisão italiana, o embate entre o norte desenvolvido e sul mais pobre. A "questão meridional", como dizem por lá, que se expressa em preconceito e, levada mais adiante, em movimentos separatistas. Rosario (Michele Raso) é um rapaz da Calábria, portanto terá problemas morando em Turim e tendo de conviver com o mimado Matteo (Paolo Cirio), filho de Luigi (Orlando). O convívio põe a nu os preconceitos e a intolerância de uns com os outros. Um pouco da história da Itália contemporânea passa por essa singela relação entre um homem rico, seu filho e um rapaz pobre e orgulhoso. Que prefere, no fim, ouvir o rumor do mar, o inconfundível som do mar que banha a cidade onde nasceu. Da mesma maneira como Rocco, vivido por Alain Delon, dizia ao seu irmão menor que um dia seria preciso voltar ao "paese", sair de Milão e retornar à Lucânia, o que de fato não aconteceu e nem seria possível. Mas era expressão desse desejo inconciliável entre vencer na vida em outro lugar e manter a dignidade de suas raízes. Dilema irresolvido e que por isso mesmo retorna com freqüência. Prefiro o Barulho do Mar (Preferisoc il Rumore del Mare). Drama. Direção de Mimmo Calopresti. It/2000. Duração: 84 minutos. 14 anos.

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