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Festival de Montreal resiste ao mercado

Evento confirma sua vocação de prestigiar talentos ainda não consagrados. Em sua 26.ª edição, premiou O Dia Mais Belo da Minha Vida, de Cristina Comencini

Por Agencia Estado
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A cinefilia pode ser considerada a grande vitoriosa do 26.º Festival de Filmes do Mundo. Durante 12 dias, mais de 250 mil espectadores aguardavam em fila, desde às 8h30 da manhã, a chance de conferir a escolha, muitas vezes "no escuro", de um título do cardápio de 400 títulos - dos quais 216 longas - de 75 países. Explica-se "no escuro". Em um festival que defende o cinema de autor, prestigia estreantes e cinematografias à margem do mercado, uma considerável parte dos títulos vem assinada por talentos promissores mas ainda não consagrados ou mesmo ilustres desconhecidos - da Ásia, África, América Latina - três regiões destacadas com mostras este ano. E se o quantitativo nem sempre corresponde ao qualitativo ou a obras de grande impacto - uma das restrições da mídia local à edição 2002 -, houve também uma unanimidade: o reconhecimento da saudável curiosidade e disposição do público, que somava de 5 a 8 mil pessoas por dia para exibições ao ar livre na Praça das Artes para filmes de sucesso - de Amélie Poulain a Quanto Mais Quente Melhor. A competição - o suposto carro-chefe do evento - apresentou 26 filmes, muitos interessantes, mas talvez nenhum realmente empolgante. E entre uma predominância de temas de conflitos étnicos e de fronteiras, ao lado de dramas familiares e conjugais, o júri presidido pelo diretor iraniano Majid Majidi (Filhos do Paraíso, A Cor do Paraíso) concedeu o Grande Prêmio das Américas a O Dia Mais Belo da Minha Vida, conflitos geracionais vistos com algum talento por Cristina Comencini, filha do veterano realizador Luigi Comencini. O prêmio de direção também foi para uma mulher - a atriz Sophie Marceau em seu primeiro filme - Parlez-Moi d´Amour. Carlos Saura, o nome mais conhecido da competição, levou o prêmio de melhor contribuição artística por Salomé, retorno aos filmes de dança na linha de Bodas de Sangue. A nórdica Maria Bonnevie (I Am Dina) e a iraniana Leila Hatami (The Deserted Sation), duas belas atrizes, dividiram o prêmio da categoria, enquanto o russo Alexei Chadov foi considerado o melhor ator por The War. O Último Trem - o único representante latino na competição, dirigido pelo uruguaio Diego Arsuaga - levou o prêmio de melhor roteiro e também o de melhor filme latino para o público e o prêmio ecumênico ao abordar de forma irreverente e bem-humorada a defesa do patrimônio cultural simbolizada por uma locomotiva cucaracha vendida para Hollywood. No ano passado, a presença brasileira teve como ponto alto a exibição e premiação de Lavoura Arcaica, de Luiz Fernando Carvalho (melhor contribuição artística). Em 2002, além de cinco filmes em mostras, o país foi referência ao dar o nome de Glauber Rocha a novo prêmio para o cinema latino americano no valor de 25 mil dólares canadenses (cerca de US$ 20 mil). O prêmio foi entregue por Lúcia Rocha, mãe do cineasta, presença comovente em sua força silenciosa a Raul Ruiz, por Cofralandes, Rapsódia Chilena, primeiro filme do diretor em seu país depois de 35 anos de atividade na Europa. Com equipamento digital e fiel à veia autoral e pesquisa de imagem, o diretor tenta um reconhecimento da história chilena anos depois da traumática queda de Salvador Allende. A produção, que levou também o prêmio da crítica internacional, promete ser apenas o primeiro de uma longa série para tevê. Da safra nacional - Rocha Que Voa, Uma Vida em Segredo, Durval Discos - foi Cama de Gato, produção em cooperativa dirigida por Alexandre Stockler, que recebeu menção honrosa "pela sua audácia e coragem" dos jurados do Prêmio de Montreal destinado a todas as obras de ficção do festival. Já Cidade de Deus, de Fernando Meirelles, foi destacado pela imprensa e considerado um "filme choc" e "uma obra poderosa" pelo jornal La Presse que selou com quatro estrelas o impacto do filme - um dos raros a receber esta cotação. No setor personalidades, Godard prometeu mas não apareceu, alegando problemas de saúde. Já Gerard Depardieu apareceu com olho roxo, resultado de um acidente de moto dias antes em Paris e nocauteou Robert De Niro, outra estrela do evento, no confronto charme e simpatia. Em festival com obras de inspiração e origens tão diversificadas, fica difícil traçar tendências ou diretrizes. Aliás, como definiu Suzana Amaral, que apresentou o delicado Uma Vida em Segredo, "o cinema anda uma grande desordem". E a desordem, como se sabe, pode ser prenúncio tanto de renovação como de decadência. Talvez, por isso, soassem tão ponderadas as palavras de um mestre do cinema no documentário Mensagem, de Akira Kurosawa, para belos filmes, produzido pela sua filha. Com serenidade, Kurosawa fala de sua formação, dos vários aspectos que envolvem um filme - da inspiração à montagem - e também de suas dúvidas em definir o que seja cinema. Não é contra as escolas de cinema, disse, mas tem certeza de que talento não se ensina. E mesmo no final da vida, um dos grandes mestres da história do cinema tinha dúvidas quanto ao ofício que abraçou. Um bom momento do festival.

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