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Festival de Gramado testa novo formato

Tradicional festival de cinema, que começa nesta segunda, terá premiações separadas para títulos brasileiros e latinos, ensaiando um retorno a suas origens

Por Agencia Estado
Atualização:

A 29.ª edição do Festival de Cinema de Gramado, que começa amanhã na serra gaúcha, testa novo formato: duas competições, uma com cinco filmes nacionais, outra com quatro latinos. Duas premiações separadas, com ênfase na primeira, na qual serão atribuídos os troféus Kikitos em todas as categorias tradicionais (filme, ator, atriz, montagem, fotografia, etc.); no módulo latino, apenas três prêmios serão distribuídos. Tudo indica que se trata de uma transição - preparando o festival para a volta ao modelo original, inteiramente dedicado à competição de filmes brasileiros, como era antes de 1992. Aos latinos, no futuro, deverá caber um espaço não-competitivo, a título de mostra informativa. Os dois primeiros longas-metragens a serem apresentados no Palácio dos Festivais são o espanhol Yoyes e o brasileiro Duas Vezes com Helena. Seguem-se, ao longo da semana, Memórias Póstumas, Urbania, Netto Perde Sua Alma e Bufo & Spallanzani, pelos brasileiros; pelos latinos, vêm 25 Watts, do Uruguai, Coronación, do Chile, e Um Amor de Borges, da Argentina. Aí está o Mercosul, minado, no plano comercial, por crises e disputas alfandegárias, mas timidamente presente no âmbito cultural. Aliás, estimular o intercâmbio com os países vizinhos era um dos objetivos da internacionalização de Gramado, que ocorreu em 1992. É bem verdade que o festival se viu obrigado a buscar filmes em outros países porque a produção brasileira, vítima da antipolítica cultural dos anos Collor, na prática havia desaparecido. Gramado fez, então, da necessidade uma virtude e abriu-se às produções latinas. Com o ressurgimento do cinema brasileiro, é natural, agora, que o rio volte ao leito de origem. E também é normal que, sob nova direção, Gramado procure mostrar cara diferente. O festival depende da política municipal da cidade serrana que o sedia. Perdeu o candidato do PMDB, o que significaria o continuísmo, venceu o PPB, e eis o festival sob nova gerência. Sai Esdras Rubim, que o comandou nos últimos anos, volta Enoir Zorzanello, que já o dirigira anteriormente. Se a troca de guarda significa alguma alteração importante de orientação estética é o que se verá a partir de hoje na serra gaúcha. Seja como for, Gramado procura sempre conciliar duas exigências, às vezes complementares, outras contraditórias: dar ênfase ao cinema de autor e à badalação dos astros e estrelas globais. A primeira delas: Gramado é um festival sério, um dos dois mais importantes do País (o outro é o de Brasília) e tem por trás de uma organização, circunstancialmente política, um staff de profissionais competentes. Gente do ramo, ensaístas e críticos de cinema, que procuram garantir qualidade estética ao evento. A segunda: além de sofrer a influência da política local, o festival muitas vezes se curva ao fato de ter por sede uma cidade turística, na qual a rede hoteleira, lojas de artigos de inverno e restaurantes detêm peso econômico considerável. Interessa aos lojistas, donos de cantinas e proprietários dos hotéis que a cidade esteja cheia de estrelinhas e galãs globais. São eles - e não os filmes - que fazem a alegria das adolescentes que vêm de Porto Alegre e sobem a serra para pedir autógrafos e dar gritinhos na entrada do cinema. Globais atraem clientes, que se hospedam, comem, lotam as lojinhas e assim todo mundo fica contente. Algumas vezes, espremido entre essas duas exigências, Gramado tem perdido o tom e mesmo desafinado feio. Vamos ver o que acontecerá este ano. E a resposta estará nos filmes e nos debates que estes poderão suscitar (ou não). Destes, o que se pode dizer, a priori? Salta à vista, no caso brasileiro, a quantidade de adaptações literárias. Dos cinco concorrentes, quatro estão nesse caso. Memórias Póstumas é tirado de Machado de Assis, Duas Vezes com Helena, de um conto de Paulo Emílio Salles Gomes, Bufo & Spallanzani, do policial de Rubem Fonseca, e Netto Perde Sua Alma, do romance homônimo de Tabajara Ruas. Memórias Póstumas, de André Klotzel, é a segunda adaptação da obra-prima de Machado de Assis, Memórias Póstumas de Brás Cubas, a primeira sendo a de Julio Bressane (Brás Cubas, 1985). Bressane procura inventar a partir do original, e Klotzel é mais literal, mesmo que isso tenha de ser discutido, porque nenhuma adaptação cinematográfica é inteiramente fiel (e nem pode ser) à obra de partida. São dois meios diferentes, com linguagens e recursos próprios. O que às vezes se debate é se uma adaptação estaria ou não à altura do original, como, por exemplo, Vidas Secas, de Nelson Pereira dos Santos, está à altura do original de Graciliano Ramos, ou Estorvo, de Ruy Guerra, nivela-se ao texto de Chico Buarque de Hollanda. Bufo & Spallanzani, de Flávio Tambellini, tirado do romance de Rubem Fonseca, tenta desfazer uma escrita infernal - a de que filme policial brasileiro não funciona. De fato, é pobre a tradição nacional no gênero, com exceção da obra-prima óbvia, Assalto ao Trem Pagador, de Roberto Farias, lançado em 1962. Tambellini consegue superar, de longe, o estigma do "filme malfeito" que durante tanto tempo foi colado ao cinema nacional. Se consegue ir além dessa exigência, uma mera condição prévia, é outra história, a ser observada durante o festival. Duas Vezes com Helena, de Mauro Faria, é também uma segunda adaptação. Com Ao Sul do Meu Corpo, Paulo César Saraceni já havia levado para a tela este relato de Paulo Emílio Salles Gomes contido no livro Três Mulheres de Três PPPês. O texto é interessante e conta a história de um rapaz, seu professor e a mulher deste, muito mais nova. Um inusual triângulo amoroso, com desfecho surpreendente, escrito com elegância e criatividade por Paulo Emílio, que foi o nosso mais importante pensador de cinema. Aliás, é uma incursão solitária do ensaísta na ficção. O desafio, para Faria, será transpor para o cinema a fina ironia do texto de Paulo Emílio, essa "libertinagem de tom que faz pensar em ficcionistas franceses do século 18", palavras usadas por Antonio Candido ao comentar o livro. Já Netto Perde sua Alma é um caso curioso em que o autor adapta sua própria obra. Tabajara Ruas, em parceria com Beto Souza, dirige seu próprio livro, no qual resgata uma figura um tanto esquecida da Revolução Farroupilha. Essa superprodução gaúcha tem feitio de épico e deve sensibilizar o público local, orgulhoso de suas tradições e história. Se dispõe de autonomia de vôo para viajar fora dos limites do seu Estado é o que se verá. Outra curiosidade: Netto é apenas o segundo longa-metragem gaúcho a concorrer no Festival de Gramado, em toda a sua história - o primeiro foi Verdes Anos, de Carlos Gerbase e Giba Assis Brasil, filme de 1983 baseado no livro de Luís Fernando Emediato. Urbania, de Flávio Frederico, é um caso à parte. Dele pouco se sabe, exceto que trata de dois outsiders que redescobrem São Paulo, percorrendo a megalópole a bordo de um automóvel. Dos quatro latinos, conhece-se a qualidade de Coronación, do chileno Silvio Caiozzi, uma adaptação do romance de José Donoso sobre a decadente aristocracia do seu país. O espanhol Yoyes, de Helena Taberna, fala da de uma militante do ETA assassinada pelos próprios companheiros de armas. 25 Watts é uma produção uruguaia de Juan Pablo Rebella, na qual três jovens discutem a falta de perspectivas na madorrenta Montevidéu. Um Amor de Borges, de Javier Torre, retorna ao que a Argentina tem de melhor, seu grande escritor. Jorge Luis Borges, um dos maiores de um século que teve Proust, Joyce, Rosa e Mann. Enfim, um belo consolo para o país vizinho, às voltas com Domingo Cavallo e a dissolução da sua economia. Serve para lembrar que um país é construído por seus artistas, não por especuladores. Estes passam, mesmo deixando terra arrasada atrás de si. Borges fica.

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