Festival de Brasília aplaude filme gaúcho

O épico gaúcho Netto Perde Sua Alma, premiado em Gramado, foi aplaudido em Brasília, que recebe o escritor mineiro Autran Dourado para a estréia de Uma Vida em Segredo, que Suzana Amaral adaptou de um de seus livros

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Por Agencia Estado
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A serenidade voltou ao Festival de Brasília e tanto os dois curtas da noite, Retrato Pintado e O Tempo dos Objetos, como o longa-metragem, Netto Perde Sua Alma, puderam ser vistos sem maiores tumultos na segunda noite da mostra competitiva. Na véspera, havia predominado um clima insurrecional por conta do excesso de ingressos vendidos e convites doados, o que provocou um overbooking no cinema e quase impediu a projeção de Lavoura Arcaica, o primeiro dos concorrentes. Nessa noite mais amena, tanto curtas como o longa foram bem recebidos pelo público. Entre os curtas-metragens, o mais aplaudido foi o bonito e inspirado Retrato Pintado, de Joe Pimentel. Já o épico gaúcho Netto Perde Sua Alma foi acompanhado com interesse e aplaudido no final. O longa já havia concorrido no Festival de Gramado, onde ganhou quatro prêmios, incluindo o de melhor filme segundo a votação do público. Entende-se. Netto, adaptado de um romance de Tabajara Ruas (que co-dirige o filme, com Beto Souza) resgata um personagem da Revolução Farroupilha, o general Netto um herói gaúcho, antimonarquista e abolicionista. Os dois diretores não vieram a Brasília. Estão, com o produtor Esdras Rubin, no Festival de Huelva, na Espanha, onde o filme representa o Brasil na mostra competitiva. Netto tem qualidades para agradar a qualquer platéia, mesmo que sua temática seja tão regional quanto o chimarrão e as bombachas. É que, na história, o general Antonio Netto (interpretado pelo ator gaúcho Werner Schünemann) aparece como herói universal. Ele recorda sua vida enquanto se encontra preso a uma cama de um hospital de Corrientes, no Uruguai, vítima de um ferimento em combate. No caso, um combate da Guerra do Paraguai, na qual lutou depois da Revolução Farroupilha. Netto, no leito do hospital, desce ao inferno de suas recordações, e seu Virgílio, nessa jornada às trevas, é o capitão Caldeira (Sirmar Antunes), companheiro de armas que aparece misteriosamente no meio de uma madrugada. Esse Netto universal é um batalhador. Fazendeiro, apaixona-se por uma aristocrata uruguaia, casa-se e tem filhos. Mas vive peleando, como se diz lá nos pampas. A monarquia acusa os gaúchos de serem belicosos. E estes dizem que não são belicosos porque assim o desejam, mas porque vivem temperados pelas batalhas em defesa das fronteiras nacionais no extremo do País. O sonho é a fundação de uma República Rio-Grandense, independente do poder imperial. Nessa república não haveria escravos, promessa que atrai os negros para a causa. Não por acaso, o filme se baseia nesse diálogo bastante fraterno entre um homem branco, Netto, e um negro, Caldeira, sendo o ideal de aproximação racial um dos mitos fundadores do Estado rio-grandense, pelo menos na leitura de Tabajara Ruas. Claro, o filme traz mais de um motivo ideológico embutido em seu celulóide, fato que não escapou à platéia gaúcha de Gramado. Por exemplo, a cena em que aparece a bandeira da República Rio-Grandense foi delirantemente aplaudida em Gramado. Durante os debates ocorridos em Gramado, os cineastas refutaram qualquer comentário que incluísse a palavra separatismo. Mas, em off, intelectuais locais falaram do seu desconforto com o parti-pris dos realizadores. Nada disso aconteceu em Brasília. Para uma platéia jovem (e o público do Festival de Brasília se juveniliza a cada ano) interessava mais a trajetória do herói, mais a épica do que a política do filme. E, nesse ponto, Netto pôde satisfazer o público. Tem aventura, um pouco de romance, outro tanto de humor. Mesmo seu herói derrotado é um herói positivo. E as idas e vindas no tempo da narrativa não comprometem a clareza da exposição, desde que se tenha sempre em mente que tudo aquilo é recordação de um ferido de guerra e portanto se passa no plano livre de uma memória que delira sob efeito da morfina. Um bom filme. Memória - No capítulo memória, será exibida domingo, no Cine Brasília, a cópia restaurada de A Bolandeira, documentário de Vladimir Carvalho. O curta-metragem adquiriu súbita notoriedade por ter inspirado Walter Salles em seu ainda inédito Abril Despedaçado, o longa-metragem que vai representar o Brasil na disputa do Oscar. Salles adapta para o sertão nordestino uma história de vingança tirada do albanês Ismail Kadaré. Precisava de um símbolo para o imobilismo, para as engrenagens que mantêm presos e determinados os seres humanos. Encontrou esse símbolo vendo o filme de Vladimir, vendo essa bolandeira que é um primitivo engenho de cana, movido a tração animal, com o qual se faz a rapadura. Vladimir Carvalho descobriu a engenhoca enquanto realizava as filmagens para seu longa O País de São Saruê, um dos clássicos do documentarismo brasileiro. Encantado com o que via, Vladimir passou o dia registrando a dura faina naquele instrumento primitivo, perdido num grotão paraibano. Batizou o resultado de miniodisséia do atraso e, em vez de incorporá-lo ao longa-metragem, transformou-o nessa obra autônoma, que agora reaparece restaurada. O escritor mineiro Autran Dourado chegou a Brasília para acompanhar a projeção de Uma Vida em Segredo, que Suzana Amaral adaptou de um dos seus livros. Modesto, Autran disse ter certeza de que o filme será melhor que o livro. Suzana volta às telas 16 anos depois de A Estrela Sobe, versão para a tela do romance homônimo de Clarice Lispector, e ganhador de 11 prêmios no Festival de Brasília de 1986. Este sábado, na mostra competitiva, passa outro dos longas-metragens inéditos do festival, Samba Riachão, documentário de Jorge Alfredo sobre o compositor baiano Riachão. O repórter viajou a convite da organização do festival

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