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Fernando Meirelles filma o apartheid brasileiro

Cidade de Deus, que representa o Brasil no Festival de Cannes e passa no sábado na Croisette, baseia-se no livro de Paulo Lins que traz notícias da guerra particular que dilacera o País

Por Agencia Estado
Atualização:

Há uma guerra no Brasil, hoje. "A situação é muito pior do que a gente imagina", diz o diretor Fernando Meirelles. Cita dados oficiais, do IBGE. Das 24 mil mortes violentas ocorridas no Brasil, no ano passado, 17.600 tiveram ligação com o tráfico. Mais de 1.200 mortes por mês. "No conflito do Oriente Médio, morre muito menos gente e o assunto não sai da mídia." A guerra particular que se trava no País, pelo contrário, não sai na mídia. O brasileiro convive com essa violência, essa chaga social. Age como se ela não existisse. Falar sobre esse mundo convulsivo não estava nos planos de Meirelles. E, então, um amigo, o diretor e roteirista Heitor Dhalia, lhe deu o livro Cidade de Deus, de Paulo Lins, pedindo que ele lesse. E mais: disse que daria um grande filme. Meirelles não quis nem saber: "Sou de São Paulo, que condições tenho de fazer um filme sobre o tráfico no Rio?" Mas leu Cidade de Deus e, de repente, surpreendeu-se fazendo anotações que configuravam uma seleção de cenas, de personagens. Ele não escolheu filmar Cidade de Deus. Foi escolhido pelo filme. Meirelles possui um currículo impressionante. Seria preciso mais do que o espaço desse artigo para dizer tudo o que ele já fez, em cinema e televisão. Cursou arquitetura. É arquiteto, portanto, mas a fama é de publicitário, um dos mais bem-sucedidos do País. A 02 é a maior produtora brasileira. Por que um homem desses, rico, cultivado, elegante, engajou-se num projeto como Cidade de Deus, para pôr na tela o Brasil dos excluídos? "Porque não vivo numa publicidade, não faço parte de nenhum comercial. Quis encontrar o meu País e dar voz a um segmento invisível, não deve ser difícil entender isso." E não é mesmo. Meirelles não tem muita expectativa de que os franceses possam entender toda a dimensão do filme que fez. Acha a vitrine de Cannes importante para lançar ao mundo o grito da Cidade de Deus, mas há tanta gente importante participando da seleção oficial. Um filme do Brasil, com diretor desconhecido e atores estreantes, que efeito terá? Anselmo Duarte devia pensar a mesma coisa quando levou O Pagador de Promessas a Cannes. Havia filmes de Michelangelo Antonioni, Luis Buñuel e Robert Bresson na competição. Foi ele quem ganhou a Palma. Meirelles não concorre ao prêmio, mas depende das qualidades que conseguiu imprimir a Cidade de Deus para que o mundo inteiro passe a falar sobre o filme. E, depois, não se pode esquecer que Walter Salles, o diretor do admirável Abril Despedaçado, considera Cidade de Deus o melhor filme brasileiro desde Pixote, a Lei do mais Fraco, de Hector Babenco, há 20 anos. As imagens que Meirelles apresenta ao Estado aguçam a curiosidade. Permitem entender o que ele não se cansa de repetir: "A força desse filme está nos meninos." Os ´meninos´, como ele chama, são os garotos negros na faixa de 12 a 20 anos que Meirelles e sua co-diretora, Kátia Lund, conseguiram encontrar, após muita busca. Quando se decidiu a filmar Cidade de Deus, ele percebeu que sua maior dificuldade seria encontrar os atores certos para os papéis. Não existem atores nessa faixa etária e com essas características. Ele também não queria colocar rostos já conhecidos na tela. Para dar impacto à letra da música cantada por Seu Jorge, do ex-Farofa Carioca - "A carne mais barata do mercado é a carne negra" -, tinha de criar seu elenco. Com Kátia Lund, entrevistou e gravou imagens de cerca de 2 mil garotos. Kátia foi decisiva ao longo de todo o processo. "Ela não participou da parte técnica nem da montagem, mas é co-diretora porque o que fez com aqueles garotos é uma coisa maravilhosa", explica Meirelles. Usando a Fundição Progresso, no Rio, como espaço de pesquisa, os dois fizeram workshops que levaram à pré-seleção de 200 garotos. Mais workshops e chegaram ao grupo de 110 jovens, alguns ainda meninos, que estão no filme. Trinta deles interpretam papéis com direito a falas. E o conflito dramático estabelece-se entre os personagens de Alexandre Rodrigues e Leandro da Hora. Os dois vão a Cannes. Meirelles ama esses garotos e não só eles. "Tenho agora 50 filhos", diz. Ele não fala disso, mas teme o efeito Pixote. Não é justo catapultar esses meninos, tão duros e, ao mesmo tempo, tão frágeis, à glória do cinema e, depois, abandoná-los à própria sorte. "Valeu, muito obrigado, até logo." Meirelles criou a ONG Nós do Cinema. Era o nome que dava aos workshops, que colocavam os garotos diante da câmera o tempo todo, de tal maneira que eles se habituaram a ser filmados e perderam toda inibição. A ONG funciona como ponto de apoio. Qualquer problema, qualquer dúvida, é só recorrer a ela. Meirelles queria fazer mais pelos garotos. Apresentou projetos de oficinas e workshops a diversas empresas. Todas reconheceram a importância social do projeto, mas disseram não. Ele banca sozinho, do próprio bolso, os cursos profissionalizantes e o sistema de apoio para encaminhar esses jovens na vida. Faz isso sem alarde, movido pela mesma consciência, a mesma obrigação interior, que o levou a dirigir o filme. No making of, que Meirelles pretende incorporar ao DVD, quando for lançado, o roteirista Bráulio Mantovani diz que o livro de Paulo Lins era um manancial tão rico que a dificuldade não era o que colocar na tela, mas o que tirar. Meirelles acrescenta histórias que ocorreram à margem da imagem. Em mais de um momento, filmando na própria Cidade de Deus, teve de recorrer a moradores não só para figuração, mas também para fazer a segurança. Ouviu de um deles a frase que lhe cortou o coração. O cara, de 26 anos, 12 dos quais passados em institutos correcionais e cadeias, foi fazer a segurança numa cena na praia. Diante do mar, ajoelhou-se e chorou. "Imagina, morando no Rio, ele nunca tinha visto o mar", conta Meirelles. Colocar na tela o apartheid social que dilacera o Brasil foi a meta que ele se impôs. Espera ter feito o filme que os seus garotos merecem.

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