Felicity Huffman interpreta transexual em Transamérica

Ela, protagonista do filme do diretor estreante Duncan Tucker, concorreu ao Oscar de melhor atriz como Bree, homem que está decidido a fazer uma vaginoplastia

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Por Agencia Estado
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Hormônios podem mudar a fisiologia de um indivíduo, mas não sua voz - e tampouco a sociedade em que vive. Transamérica começa justamente com uma tentativa frustrada de Bree (diminutivo de Sabrina, transexual interpretado pela atriz Felicity Huffman) de imitar a voz de uma mulher, seguindo a orientação de um vídeo de Andrea James (por ironia, chamado Finding Your Female Voice, ou Encontrando Sua Voz Feminina). Bree é um homem. Renegado pela família por assumir sua condição transexual, ele está decidido a fazer uma vaginoplastia quando descobre ter um filho morando em Nova York, fruto da relação acidental com uma antiga amiga de colégio. Para piorar, Toby (Kevin Zegers), o tal garoto, é, como ele, um desajustado social, um outsider. Acaba de ser preso em Nova York por porte de drogas. Em ambos os casos, Bree e Toby são seres solitários, vítimas do desgarramento de famílias disfuncionais. Bree escapa da sua, que não o aceita como transexual, para viver como mulher pobre no subúrbio de Los Angeles. O filho, que ignora sua existência e foi criado por um padrasto pedófilo, foge de casa e sobrevive com a única arma que tem: seu corpo. A uma semana de se submeter à cirurgia para virar mulher, Bree vai ter de embarcar numa viagem de autoconhecimento ao lado do filho prostituído e drogado. Na melhor tradição das parábolas bíblicas, Bree vai tirar o filho pródigo da prisão e levá-lo para Los Angeles. É a exigência que faz sua terapeuta para aprovar a vaginoplastia. Ou seja: Bree vai ter de assumir o missionário papel do pai e da mãe do garoto. Poderia ser mais um road movie carregado de metáforas, a exemplo dos filmes do alemão Wim Wenders, mas o diretor estreante Duncan Tucker preferiu o caminho realista de outro modelo, Gus van Sant. Colocou Bree e Toby na estrada, fazendo o garoto imaginar que a "conservadora" Bree, vestida como uma missionária evangélica, está empenhada em convertê-lo. O pai (ou futura mãe) nada faz para desfazer o equívoco. Quer apenas se livrar do garoto, conduzindo-o de volta à casa do pai adotivo. Nessa jornada, ambos encontram outros deslocados da América (um mestiço rancheiro do Novo México e um extemporâneo xamã hippie viciado em peiote). O gênero road movie - americano, por excelência - serve basicamente a Tucker (também autor do roteiro) para desenvolver um filme original sobre mutação antropológica. Com o aumento do número de operações para mudança de sexo - desde que a pioneira Christine Jorgensen fez a sua, em 1953 -, a sociedade moderna tem enfrentado aos tropeços o dilema do reconhecimento da alteridade. Como inserir o transexual e deixar de vê-lo como uma aberração? Essa é a resposta que Bree vai ter de procurar na estrada. Sua identidade feminina não virá com a mudança de voz ou de sexo. Muito menos com um vestido ou um batom. Criado como homem, ele praticamente está condenado ao desajuste, corporal e social. O próprio diretor Tucker enfrentou o dilema dentro de casa. Só depois de quatro meses dividindo a residência com Katherine Connella, a atriz - transexual - revelou ao cineasta pertencer ao gênero, enquanto discutiam diferenças de percepção entre homens e mulheres. Bree, no estágio pré-operatório, mostra-se igualmente inseguro diante de tantas mutações. Numa festa íntima entre pares, ele conhece um homem que fez a cirurgia, virou mulher e, arrependido, tentou retomar a condição original. A vida não é "a soma das partes", como resume a propaganda do filme. Parece-se mais com a divisão do todo. Se as sociedades arcaicas reverenciavam a figura do andrógino como semideus, a moderna o enxota como a um monstro. Os esforços de Tucker para concluir sua lição de tolerância e respeito mútuo não tomam, porém, um atalho didático ou moralista nessa viagem de autoconhecimento. Ele coloca um contrapeso irônico para cada frase que possa sugerir sua adesão ao politicamente correto. Recusa-se a julgar seus personagens, movidos por fantasias e condicionados pela formação do americano médio, inculto e consumidor. Ainda assim, não cede ao apelo de mostrar um transexual como freak circense. Livra-o do estigma dos personagens de Tod Browning em seu clássico filme sobre aberrações circenses (Freaks). Passa, enfim, longe do camp, da caricatura reducionista. Tucker conta para isso com uma intérprete extraordinária, Felicity Huffman, ganhadora do Globo de Ouro e indicada para o Oscar de melhor atriz num ano em que todos os candidatos a melhor ator (Heath Ledger e Philip Seymour Hoffman) - coincidência - interpretaram homossexuais (respectivamente em O Segredo de Brokeback Mountain e Capote). Felicity merecia. É preciso ser uma mulher e tanto para interpretar o papel de um homem que vira mulher e não consegue falar como uma delas. Até mesmo seu marido, William Macy, produtor executivo de Transamérica, deve ter ficado surpreso e confuso. Não é uma atuação. É uma metamorfose e tanto. Transamérica (Transamerica, EUA/2005, 103 min.) - Comédia dramática. Dir. Duncan Tucker. 14 anos. Bristol 7 - 13 h, 15h05, 17h10, 19h15, 21h20(6.ª e sáb. também 23h59). Cine Bombril 1 - 14 h, 16 h, 18h, 20 h, 22 h (4.ª não haverá 22h). Espaço Unibanco 2 - 14 h, 16 h, 18 h, 20 h, 22 h. HSBC Belas Artes 1 - 15h, 17h10, 19h20, 21h30 (sáb. também 23h30). Lumière 1 - 13h30, 16 h, 18h30, 21 h. Reserva Cultural 1 - 13h20, 15h20, 17h25, 19h30, 21h40 (sáb. também 23h45). Unibanco Arteplex 2 - 13h10, 15h20, 17h30, 19h40, 21h50 (sáb.também 0 h). Cotação: Bom

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