"Felice... Felice...", uma bela história de amor

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Por Agencia Estado
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No final de Felice.. Felice..., o narrador, que é o personagem-título, interpretado por Johan Leysen, diz que o epílogo de sua história - o momento em que ele está deixando o Japão - é uma daquelas datas de que ninguém vai se lembrar, no futuro. E diz que dia é aquele - 28 de dezembro de 1895. É uma sutil ironia do diretor Peter Delpeut. Cinéfilo que se preza sabe que data é esta. Foi o dia, na verdade a noite em que os irmãos Lumière realizaram no Grand Café, de Paris, a primeira exibição pública de um invento no qual eles não colocavam muita fé, o cinematógrafo. Não viam muito futuro no experimento. A partir daí se fez história e surgiu o cinema, a chamada sétima arte, que se tornou dominante no século 20, o século das imagens. Essa referência a uma data tão emblemática não é fortuita (nem gratuita). Felice... Felice... é um filme de amor - um belo filme de amor. Mas embutida na história de Felice o fotógrafo europeu que volta ao Japão em busca de O-Kiku, a mulher que foi seu grande amor, o diretor Delpeut não faz apenas um estudo das diferenças culturais entre Oriente e Ocidente, mas também uma rigorosa reflexão sobre a fotografia e o cinema. Os românticos vão gostar, pois a história de amor é quase tão linda (ou tão linda) quanto a de Amor à Flor da Pele, o deslumbrante filme de Wong Kar-vai que a Imovision promete estrear ainda este mês nos cinemas de São Paulo. Com As Coisas Simples da Vida, de Edward Yang, Amor à Flor da Pele já forma a dupla dos que serão os melhores filmes de 2001. Vai um certo exagero nisso, pois o ano está começando e ainda é cedo para tentar avaliar o que se verá de bom neste 2001 tão mítico para fãs de cinema, mas As Coisas Simples e Amor à Flor da Pele são geniais e, com certeza, chegarão cobertos de glória ao fim da temporada. Os românticos vão gostar, portanto, mesmo que o filme seja deliberadamente lento e delicado, a ponto de talvez produzir exasperação em espectadores que só rezem pela cartilha do cinemão de Hollywood. Mas os fãs de cinema vão gostar igualmente e até mais, ainda. Delpeut tem 45 anos (nasceu em 1956). Estudou filosofia e, em 1984, formou-se pela Academia Holandesa de Cinema. Foi diretor e programador do Museu de Cinema da Holanda. Pode-se argumentar que o processo criativo é muitas vezes instintivo, mas esse homem exerce o mais rigoroso controle sobre o seu método. Felice... Felice... desenvolve-se como um flash-back ilustrando a carta que Felice escreve a seu irmão, na Europa. No começo, ele está voltando ao Japão, depois de anos de ausência. Procura a mulher que abandonou, mas O-Kiku não está à sua espera. Felice põe o pé na estrada, à sua procura. Vira andarilho. Percorre estradas, pousadas, algumas delas que freqüentou no passado com própria O-Kiku. Por meio de diálogos (com seus hospedeiros, com um discípulo, que virou fotógrafo famoso), ele tenta entender os motivos da ruptura entre ambos. Esses motivos dizem respeito às diferenças profundas entre a mentalidade oriental e a ocidental. Em vários momentos, Felice ouve sempre o mesmo argumento: "Você não entendeu nada." Não entendeu mesmo. Felice deu dinheiro ao pai de O-Kiku. Comprou-a, portanto. E por isso duvida do amor dela. Busca um absoluto nesse amor, quer um tipo de entrega que coloca sempre em dúvida, pois entre O-Kiku e ele está sempre essa questão aviltante do dinheiro. Duas cenas são exemplares. O diálogo de Felice com Ueno, o discípulo que tenta fazê-lo entender as nuances do comportamento de O-Kiku, mas ele está mais interessado em penetrar na intimidade desse homem, em devassar seu segredo, convencido de que também amava a mulher. Há um pudor, uma reserva, um sentimento nesse personagem de homem oriental que são verdadeiramente emocionantes. A cena termina com um comentário de Felice ao irmão, dizendo que o ex-assistente virou um hábil comerciante, que fez fortuna com seus retratos com o Monte Fuji ao fundo. Felice só consegue enxergar isso. Não entendeu nada. O mesmo sentimento se desprende do seu diálogo com a prostituta corroída pela sífilis e que também tenta fazê-lo entender a sutileza do pensamento oriental. Nesses diálogos, Felice conta que é cada vez mais difícil para ele lembrar-se do rosto de O-Kiku. Apaixonado pela idéia da mulher, admite que será quase impossível reconhecê-la, se cruzar com ela na rua. O espectador começa a perguntar-se se a busca chegará ao fim, se os dois vão mesmo encontrar-se. O desfecho confirma Delpeut como um cinéfilo. Ele viu (e ama) o clássico Clamor do Sexo, de Elia Kazan, um dos grandes filmes dos anos 60 - e de todo o cinema. Há uma maturidade dos sentimentos que faz desse final uma experiência rara. Permeando tudo isso, há o fato de o protagonista ser um fotógrafo. Felice está sempre se interrogando sobre a natureza da imagem, sobre a possibilidade de se reconstituir a vida por meio da foto. Delpeut amplia essa preocupação no tratamento que dá à reconstituição de época. As cenas são sempre estilizadas, a época vem por meio das fotos dos artistas do século 19 que inspiraram o diretor. São fotos de Felice Beato, de Hikoma Ueno, do Barão von Stilfried, que documentaram o Japão com suas câmeras. Imagens fixas, sem movimento, expressões desse amor congelado no tempo. Só no fim a vida ressurge em toda a sua força e aí Felice já abandonou a fotografia. Está começando uma nova época, representada pelo cinema. A riqueza das sugestões desse filme vai muito além. Delpeut é um diretor de imagens. Fez um filme bonito e não só pela plasticidade. Felice... Felice... é obra de um poeta do cinema, que reflexiona a vida e a sua ferramenta de trabalho. Felice... Felice... (Felice Felice) - Drama. Direção de Peter Delpeut. Hol/98. Duração: 99 minutos. Top Cine 1, às 18 horas, 20 horas e 22 horas. 14 anos.

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