Fanáticos, eles foram em todas as mostras

Às vésperas de iniciar mais uma correria com a chegada da 30.ª Mostra de Cinema de São Paulo, cinéfilos lembram como tudo começou

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Por Agencia Estado
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Anette Fuks fez faxina geral em casa na terça. E na terça-feira fez a feira da semana. Tudo para preparar o terreno para poder se dedicar na próxima semana à sua atividade preferida do ano: a de cinéfila de carteirinha (ou melhor, credencial) da Mostra de Cinema SP. "Preparo estrogonofe, fricassé de frango e deixo tudo congelado. Assim, quando chego das sessões, janto direitinho. Não agüento comer porcaria feito os jovens", conta a dona de casa que, aos 62 anos, nunca perdeu uma edição da Mostra. Dona Anette nem sempre teve tempo para conferir os quatro, cinco e até seis filmes diariamente. "Tinha 32 anos quando a Mostra começou. Meus dois filhos, Érico e André, eram pequenos. Só ia às sessões da noite. Quando eles cresceram um pouquinho, passei a levá-los comigo. Naquele tempo, não havia tanto controle para impedir crianças de entrarem em filmes mais polêmicos", relembra ela, que não se lembra do primeiro filme que viu na Mostra. "Mas nunca vou esquecer da primeira vez em que fui até o Masp tentar ver um filme. Era um dia frio e a fila dava voltas. Meu marido me fez desistir. E eu voltei para casa frustada e pensando em uma logística que me permitesse assistir ao máximo de filmes possível sem pegar tanta fila", conta. Deu certo. Hoje dona Anette é referência para os cinéfilos que praticamente acampam nos cinemas. "Calculo quanto tempo levo de uma sala à outra, o tempo de cada filme." Mas ela esclarece que a corrida só começou depois que a Mostra começou a crescer, nos anos 80. "Antes, era só o Masp e mais o Cine Palmella, na rua Pamplona, que hoje é um bingo", relembra ela, que por pouco não traumatizou seus filhos. "Veja bem, ou a gente se tornava amante do cinema, ou odiava de vez. Porque não é loucura levar uma criança , que está em processo de formação, para ver filmes que são, para dizer o mínimo, difíceis e polêmicos", comenta Érico, que hoje tem 38 anos e é tão cinéfilo que, mesmo sendo publicitário, tornou-se colaborador de dois sites sobre cinema. "Acabei me apaixonando. Mas só tomei consciência do que era a Mostra com uns 17", relembra ele, que, até esta idade, pegava dicas com a mãe do que ver. "A Mostra teve passagens importantes. Descobri um poeta grego, o Konstantinos Kavafis, quando vi um filme sobre ele (Kavafis, de Yannis Smaragdis). em 1997. Fundei uma comunidade sobre ele no orkut." Dona Anette não tem do que reclamar. "Só falta eu rezar para o Cakoff todos os dias. Graças a ele eu pude conhecer o Tarantino - até hoje guardo o cartão laranja que ele distribuiu na sessão de Cães de Aluguel alertando para o teor violento do filme -, Hall Hartley, Kusturika", diz ela, que ao longo destes anos fez muitos amigos nas filas. "São amigos que encontramos sempre em eventos de cinema pela cidade. Mas a Mostra é o ponto alto. O Dr. Sérgio é um deles." O ´Dr. Sérgio´ é Sérgio de Oliveira, advogado e, claro, apaixonado por cinema. "Anoto todos os filmes que vi. São mais de 13 mil registrados em 40 volumes. Antes só anotava nome e diretor. Hoje colo fotos, críticas", conta ele, que, aos 70 anos e "depois de três enfartes" decidiu só trabalhar de manhã para, à tarde, assistir a seus três filmes de cada dia, quando não mais. Durante a Mostra, o número sobe para até sete filmes diários. E se lembra de todos? "Confesso que não. Já fui ver filme em cartaz que só depois lembrei que já tinha visto." O fotógrafo Nilton La Scalera, que também acompanhou todas as edições da Mostra vai na contramão da maratona. "Nas primeiras edições, conseguia fazer isso porque só estudava. Depois, os filmes foram aumentando e meu tempo diminuindo. E fica difícil absorver tanta informação. Hoje vejo dois ou três filmes." Dr. Sérgio prefere a maratona. Afinal, seus cadernos precisam de material. E ele ainda é colaborador da Rádio Cultura. "Ainda tenho o diário da primeira Mostra, em que assisti a Guerras Camponesas, da ex-Iugoslávia, O Enigma de Kaspar Hauser, do Werner Herzog", relembra ele, que, com outros "dependentes da Mostra", fundou a Confraria Lumière, que se reúne para discutir filmes, troca e-mails, elege os melhores do ano. "Triste é que estamos perdendo os amigos e membros mais antigos. Mas sempre há gente nova se juntando a nós. O cinema não pode morrer."

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