PUBLICIDADE

Fagundes será o Deus brasileiro de Cacá Diegues

O ator vai estrelar o road movie de Cacá Diegues Deus É Brasileiro, baseado em conto de João Ubaldo Ribeiro, com locações em Alagoas, Pernambuco e Tocantins

Por Agencia Estado
Atualização:

A figura de Deus, para o cineasta Cacá Diegues, assemelha-se a um homem alto, corpulento, bem-apessoado e com os cabelos grisalhos. Mais precisamente, com a estampa de Antônio Fagundes. Não se trata, na verdade, de uma escolha aleatória: o ator vai realmente personificar o ser supremo dos católicos no longa-metragem Deus É Brasileiro, a partir de setembro, quando Diegues inicia a produção, seu 16.º longa, filmando em três Estados. "Além de suas inegáveis qualidades como ator, Fagundes está com uma idade adulta, porém indefinida, que não o classifica como jovem ou velho, uma imprecisão ideal para representar justamente Aquele que não tem idade", comenta o diretor, recuperado de uma recente cirurgia de hérnia de disco. "Assim, o Fagundes tem o perfil certo para personificar uma figura divina com aspecto bem humano." Deus É Brasileiro será um filme de estrada: a história começa na praia e termina na floresta. "Os personagens vão atravessar diferentes regiões geográficas, começando em Alagoas, passando por Pernambuco e terminando no Tocantins." O processo de filmagem, porém, vai ser no sentido inverso por conta de uma coincidência: setembro será o único mês em que Fagundes já estará descompromissado da gravação da novela Porto dos Milagres, ao mesmo tempo em que ainda não terá começado o período de chuvas. "Depois disso, teríamos de adiar para o próximo ano." O roteiro é baseado em um conto de João Ubaldo Ribeiro, O Santo Que não Acreditava em Deus, que figura no livro Já Podeis da Pátria Filhos (Nova Fronteira, 200 páginas, R$ 26 00). A história começa com o encontro de um pescador da Ilha de Itaparica com Deus, que confessa seus problemas e pede ajuda para encontrar um homem chamado Quincas das Mulas. Seu objetivo é transformá-lo em um santo, a pedido do papa, que vá substituí-Lo durante um período de férias. Deus não contava, porém, com o fato de Quincas ser ateu e, na tentativa de fazê-lo aceitar a incumbência, Ele passa um dia inteiro convivendo de sua rotina: experimenta a cachaça, almoça um sarapatel e termina a noite em um bordel, sempre sob o olhar atento do pescador, que acompanha a dupla. "Não se trata, portanto, de discutir a existência de Deus", comenta Diegues. "O que me interessa é Deus como o personagem literário mais importante da civilização ocidental, envolvido em uma comédia despretensiosa, que discute a diversidade baiana e o sincretismo religioso do povo brasileiro." Ao apresentar o desânimo e o cansaço divino com a humanidade, Diegues pretende fazer um filme favorável à imperfeição, em que os erros da criação são apontados não como defeitos, mas como aspectos necessários para o constante desenvolvimento humano. "Só assim as gerações vão se sucedendo e se aperfeiçoando." O cineasta deve definir ainda nesta semana quem serão os atores que vão interpretar os papéis de Quincas das Mulas e do pescador. Serão profissionais experientes, que irão contracenar com figurantes a serem escolhidos nos próprios Estados onde ocorrerão as filmagens - o elenco total deverá contar com cerca de 30 atores. Para Diegues, é importante preservar o sotaque local não só para garantir a autenticidade como pelas improvisações que deverão surgir. "Como todo filme de estrada, o que acontece à margem da pista é tão importante como o que está dentro, mesmo que não esteja previsto no roteiro", comenta o diretor, que não percorria o interior brasileiro com um equipamento de filmagem desde Bye Bye Brasil, em 1980. "Afinal, todos os acidentes de percurso cabem em uma história em movimento." As viagens que Diegues fez para pesquisar locações (foi três vezes ao Tocantis e duas a Pernambuco) ofereceram valiosas idéias, que foram incorporadas ao roteiro. "Não tenho interesse em fazer uma reportagem ou em apresentar uma visão social do Brasil; também não tenho a paciência santa de um documentarista, pois gosto de intervir na história", comenta. "Estou com o espírito muito aberto para fazer uma comédia de costumes, mas com os olhos abertos, pois não vou passar distraído pelas estradas." Mil páginas - Mesmo aberto aos imprevistos, o cineasta sabe da necessidade de um bem organizado fio condutor, por isso, estruturou um roteiro que chegou a ter mil páginas, já enxugado para 90. "Há uma flexibilidade na narrativa que permite incorporar o inesperado", comenta. O trabalho da escrita começou em parceria com o próprio João Ubaldo Ribeiro, que participou das primeiras versões. Mas a consolidação do texto veio ao lado de João Emanuel Carneiro, com quem Diegues estruturou definitivamente a história, contando ainda com a colaboração da produtora Renata Magalhães. E a versão final foi feita pelo próprio cineasta. A estrutura de "road movie", porém, já foi utilizada em filmes que se passam nas metrópoles. Um Trem para as Estrelas, por exemplo, é lembrado por Diegues como um deles. "A história evolui e passa por diversas situações, como se estivesse em movimento." Mas a decisão de transformar Deus É Brasileiro em um filme de estrada surgiu ao acaso - Diegues pretendia rodar as cenas apenas na Ilha de Itaparica, onde se passa o conto original. "Na verdade, eu pretendia unir todas as histórias do livro, em 1997, mas não consegui, escolhendo apenas aquele conto", comenta o cineasta, que interrompeu o projeto para realizar Orfeu, retomando-o no ano passado. "Começamos a escrever o roteiro sem a preocupação de definir a localização, mas, ao terminar, percebemos que a história começa no mar e termina na floresta, portanto, não poderia filmar no mesmo lugar." A pesquisa de locações começou a partir de uma sugestão do cineasta Walter Salles e seu assistente, Sérgio Machado, que mostraram uma série de fotos feitas no Jalapão, em Tocantis Jalapão. "Fiquei fascinado pela originalidade geográfica do local, que mistura floresta e cerrado, além da existência de túneis", lembra Diegues, que visitou o local e o aprovou como locação. "Como se trata de uma região belíssima, decidi filmar ali a cena de Deus com o candidato a santo." Será filmada no Jalapão, portanto, a metade final do longa-metragem. No caminho ao mar em busca de outras locações, o cineasta decidiu passar por Alagoas, onde nasceu, na cidade de Maceió, há 61 anos. "Foi um reencontro emocionante, algo como a descoberta de uma jóia de família que estava esquecida", conta Diegues, que não filmava naquele Estado desde Bye Bye Brasil. Além da necessidade de evitar o período de chuvas no Tocantins, a urgência em terminar o filme até março é explicada pelos acontecimentos previstos para o próximo ano: Copa do Mundo de futebol e eleição presidencial. "Trata-se de um ano fatídico para o cinema, em que o segundo semestre está praticamente comprometido; assim, preciso lançar o filme em março para evitar concorrência", explica o cineasta, que conta com o hábito de executar a edição paralelamente à filmagem. "Assim, meus filmes já têm praticamente um primeiro corte ao final da rodagem, pois não espero terminar de filmar para começar a montagem." A proximidade da eleição presidencial evidencia também a necessidade de desenvolvimento do trabalho do Grupo Executivo de Desenvolvimento da Indústria Cinematográfica (Gedic), formado por cineastas, produtores e representantes da televisão e do governo, responsável pela criação de um pacote de medidas para o desenvolvimento do cinema. Entre as metas, destaca-se a ocupação até 2005, de 40% do mercado cinematográfico nacional, 30% do mercado de vídeo e 15% do mercado de DVD; ampliação do número de salas de exibição (4000 em 2008) e a criação de um fundo setorial de investimento. "Acredito que, até o final de junho, o governo vá apresentar as primeiras medidas", conta Diegues, que está no grupo de discussões. "Mas, é evidente que, apesar da boa vontade de todos, não temos a pretensão de resolver todos os problemas de uma só vez, o que é impossível." O cineasta teme apenas que a atual crise de energia dificulte a resolução dos problemas do, segundo ele, "apagão cinematográfico". "Espero que a crise energética não atrapalhe o entusiasmo que o governo vinha demonstrando." Apesar da má situação do cinema nacional exigir medidas imediatas (os investimentos promovidos pela Lei do Audiovisual caíram de R$ 120 milhões em 1999 para cerca de R$ 20 milhões atuais), Diegues lembra que o Gedic não tem poder executivo, mas consultivo, apontando apenas os caminhos ideiais para a consolidação de uma indústria do audiovisual. "Precisamos acabar com os ciclos que sempre marcaram o cinema brasileiro e criar uma estrutura definitiva", comenta Diegues que, ao fazer uma pesquisa na produção dos últimos anos, descobriu o surgimento de 56 novos cineastas desde a chamada retomada da cinematografia nacional, a partir da Lei do Audiovisual. "Só na época da Embrafilme é que surgiram tantos nomes, mas agora a situação é dramática, pois todos estão com problemas para realizar seu segundo filme, uma vez que a lei esgotou suas possibilidades ao contemplar somente a produção." Diegues resume a gravidade do problema com um exemplo que considera decisivo: o período de oito anos de inatividade cinematográfica de Nelson Pereira dos Santos. "Poucos países no mundo podem se orgulhar de ter um autor da sua qualidade, mas que é obrigado a mendigar recursos para conseguir realizar um projeto para a televisão por assinatura, que não é vista por tantos", comenta. "Isso é inadmissível e deveria preocupar até o governo."

Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.