PUBLICIDADE

Excesso de reverência inibe "Depois da Chuva"

Por Agencia Estado
Atualização:

Durante 28 anos, Takashi Koizumi foi assistente de Akira Kurosawa. Aprendeu a admirá-lo como artista e como homem. O artista, por seu humanismo e pela excepcional capacidade como narrador. O homem, pelo elevado código de moral. Koizumi esteve em São Paulo participando da Mostra Internacional de Cinema de 1999. Veio mostrar Depois da Chuva. O filme recebeu o prêmio especial na mostra daquele ano. Estréia amanhã na cidade. Tem no roteiro de Kurosawa sua grande credencial. Kurosawa sensei, o mestre. Depois da Chuva era o roteiro no qual ele trabalhava ao morrer, em 1998. Depois das obras culminantes que foram Kagemusha, A Sombra do Samurai e Ran , Kurosawa havia provocado mais polêmica que admiração com os ambiciosos Sonhos e Rapsódia de Agosto. Com aquele que terminou sendo seu último filme, Madadayo, voltou a um registro mais simples. Depois da Chuva prossegue com algumas questões levantadas pela história do velho professor, vista pelos olhos dos alunos que o reverenciam como mestre. É a história de um samurai desempregado. A mulher e ele estão numa hospedaria. Chove muito, o rio transbordou e a passagem tornou-se impossível. A estalagem abriga muita gente - pobre, faminta. Brigam entre si, agridem-se. Ele promove uma grande confraternização. Traz comida, bebida. Mais tarde, confessa à mulher que conseguiu o dinheiro lutando. Fez isso mesmo sabendo que é indigno de um samurai lutar por dinheiro. Na manhã seguinte, um incidente na floresta o coloca em contato com o soberano daquelas terras. Impressionado com o samurai, ele o convida para ser seu mestre espadachim. O herói vence todas as provas e elas não são poucas, porque a possibilidade de sua nomeação desencadeia ataques furiosos de inveja e ciúme. Quando tudo parece resolvido, surge o empecilho mais grave - ele lutou por dinheiro e isto o desqualifica para o cargo. Houve muitas histórias de samurais, personagem que, na geografia da ação do cinema japonês, seria o correspondente do pistoleiro do western. Kurosawa dedicou-lhes alguns de seus filmes mais famosos - Rashomon e Os Sete Samurais são obras-primas incontestáveis, mas pode-se ver com encanto Yojimbo e Sanjuro, duas belas histórias de samurais rodadas no começo dos anos 60. Em todos esses filmes, o papel do protagonista é sempre interpretado por Toshiro Mifune. E, em todos, a história trata sempre de códigos de honra, de amizade, de respeito. Esses temas foram retomados por Kurosawa no roteiro de Depois da Chuva. Há um desenho meio impreciso dos personagens, que nunca se revelam completamente aos olhos do espectador. O samurai é alegre, não se deixa abater jamais. Segue em frente, por mais que isto lhe custe, às vezes. E é bondoso, a ponto de arriscar a própria noção de integridade para ajudar os outros. Kurosawa era pessimista em relação à humanidade. Não foi por acaso que fez aquele filme chamado de O Homem Mau Dorme Bem. Mas ele nunca deixou de idealizar um conceito de bondade. Depois da Chuva reata com O Barba Ruiva, de 1965, último filme do diretor com Mifune. O Barba Ruiva também exaltava a bondade, essa bondade que quase destrói o samurai de Depois da Chuva, condenando o protagonista à errância. Já era uma idéia expressa em Os Sete Samurais e Yojimbo. O samurai, como o pistoleiro, é comparado ao vento nesses filmes. Não cria raízes. Mas, fosse porque Kurosawa estava mais velho, ele dá aqui uma lição de sabedoria e o faz por meio da mulher - das mulheres. A mulher do soberano faz-lhe uma observação que o faz repensar o episódio todo. E a mulher do samurai chega a provocar os enviados do xogun, ao dizer-lhes que o importante não é o ter lutado por dinheiro, mas o por quê. O final inconclusivo é um toque de mestre, uma demonstração de sabedoria na sua sutileza. Tudo isto é dito em função do roteiro e pode predispor o leitor/espectador a esperar de Depois da Chuva algo que o filme não dá. Verifica-se com este filme, até certo ponto, o que também ocorre com Infiel, inicialmente apontado para estrear amanhã, mas que agora está sendo atirado para o dia 25. Infiel é um filme de Liv Ullman com roteiro de Ingmar Bergman. Não é um Bergman legítimo e até se ressente da excessiva reverência da diretora com o artista que foi seu diretor, marido, mentor. "Depois da Chuva" também tem roteiro de Akira Kurosawa, mas não é "de" Kurosawa. A excessiva reverência de Takeshi Koizumi com o artista do qual foi assistente inibe o resultado. Há excesso de prudência na forma como ele se aproxima do material. Kurosawa, com certeza, ousaria mais. Basta lembrar as cenas de batalha de Ran e a forma delicada como a pérfida Dama Kaede se move naquele clássico. O roçar da seda, quando ela arrasta seu quimono em Ran, toca o sublime e esta delicadeza de figura de porcelana não a impede de ser um monstro de maldade. Depois da Chuva é sensível, é bonito. Não desonra ninguém, muito menos a memória de Kurosawa, a quem é dedicado. Mas só o próprio Kurosawa poderia ter transformado este material numa obra-prima, embora nem ele talvez conseguisse fazer de Depois da Chuva uma reflexão tão nobre sobre o código de honra dos samurais como a que Masaki Kobayashi fez em Harakiri. Depois da Chuva (Ame Agaru). Drama. Direção de Takashi Koizumi. Fr-Jap/99. Duração: 91 minutos.

Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.