PUBLICIDADE

"Eu Tu Eles" equaciona euforia e depressão

Entre o complexo de vira-lata e o alto-astral obrigatório, protagonista do filme propõe o meio-termo da alegria possível

Por Agencia Estado
Atualização:

Como é que se conjuga esse verbo estranho chamado Eu Tu Eles? De várias maneiras. Ele é o exemplo mais bem-acabado do que pode ser o cinema comercial de qualidade no Brasil. Para consumo interno e externo. Porque, pelo que consta, esse segundo longa-metragem de Andrucha Waddington foi ovacionado pelo público estrangeiro em Cannes e as pré-estréias que têm sido realizadas País afora não são menos promissoras. Além disso, Waddington, nesse seu segundo trabalho (o primeiro foi GêmeasGilberto Gil e as Canções de Eu Tu Eles. Disco delicioso, que pode rodar o dia inteiro nos mais exigentes CD players. O disco não traz exatamente a trilha sonora do filme - vai além dela e constitui uma celebração amorosa da música nordestina. A idéia dessa oferta cruzada de produtos é que o disco impulsione o filme e vice-versa. Caso comum nos lançamentos internacionais, nem tanto nos nacionais. Além de todo esse cuidado de marketing - pré-estréias, disco, inserções publicitárias, etc. - Eu Tu Eles sai com cem cópias e parceria com a Columbia Pictures. Transformou-se na grande estréia nacional do ano. Tomara dê certo, porque Eu Tu Eles, o filme, também é delicioso. A esta altura do campeonato todo mundo já deve estar sabendo que a história se inspira num caso real, o da mulher que, um após o outro, botou três maridos dentro de casa e conseguiu conviver com os três de maneira razoavelmente pacífica. Osias (Lima Duarte) é o dono da casa, e o marido oficial; Zezinho (Stênio Garcia) é terno e cozinha bem; Ciro (Luiz Carlos Vasconcelos) é jovem. Quer dizer, a Darlene da ficção vai ajeitando a sua vidinha com os aspectos favoráveis de três homens diferentes. Parece uma fábula e deveria habitar o reino do imaginário, não tivesse acontecido de verdade, e no interior do Ceará, com uma mulher chamada Marlene Sabóia da Silva. Se você for dos que acreditam que a vida imita a arte, pode também acreditar que Marlene resolveu aperfeiçoar o romance de Jorge Amado. Em Dona Flor e seus Dois Maridos (filmado por Bruno Barreto e até hoje a maior bilheteria do cinema nacional), a protagonista precisa da aventura (Vadinho) e da segurança (Teodoro) para se equilibrar na vida. Para Marlene são necessários três pontos de apoio. Mas também é verdade que Marlene/Darlene é muito mais pé no chão do que Dona Flor. Se esta é cozinheira de mão cheia, aquela é trabalhadora rural; bóia-fria, no duro. Uma faz parte da pequena burguesia baiana; a outra é uma deserdada da terra. O ambiente da primeira é a cidade; o da segunda, o campo. Mais precisamente, o sertão. Esse espaço mítico, onde a tragédia da opressão econômica nacional foi encenada nos anos 60 (basta lembrar de Deus e o Diabo na Terra do Sol, Vidas Secas, Os Fuzis), agora é o palco mais neutro onde Darlene procura resolver a equação de terceiro grau em que se transformou sua existência. Não há nada de errado, e nem pouco digno nisso. Darlene é prática como somente uma sertaneja sabe ser. Tem de viver, ou sobreviver, criar os filhos, buscar um pouco de prazer, outro tanto de paz, sonhar às vezes, sentir-se razoavelmente segura. Qualquer dondoca de classe média aspira a isso. Por que não a mulher do povo, maltratada e batida pela dureza da vida, mas ainda assim sensual? Nesse sentido, Eu Tu Eles é democrático ao acompanhar, amorosamente, as providências tomadas por Darlene para tornar viável uma vida áspera. Claro, o filme responde e dialoga com determinada auto-imagem do Brasil, ela também bastante ambígua. Às vezes somos uma nação que não gosta de si mesma, com complexo de vira-lata, um Narciso às avessas que cospe na própria imagem, como dizia Nélson Rodrigues. Outras, vivemos no alto-astral permanente, na alegria obrigatória, no sol, no sal, no sul de um país moreno e malemolente. Essa ciclotimia, essa mudança súbita de humor, que vai de um extremo a outro sem meio-termo, da euforia à depressão, talvez seja o que melhor nos caracteriza. Eu Tu Eles propõe um termo médio nessa balança instável por meio de uma personagem que abre caminho para a felicidade em meio à mais absoluta carência material. Pensando bem, Marlene, ou Darlene, é uma espécie de heroína da nossa gente. Uma personagem emblemática do Brasil real. Eu Tu Eles. Comédia. Direção de Andrucha Waddington. Br/2000. Duração: 119 minutos.12 anos. www.eutueles.com.br

Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.