Estreia 'Uma História de Loucura', às vésperas do 24 de abril que lembra o genocídio armênio

Robert Guédiguian conta como caso de jornalista espanhol lhe forneceu a trama do longa

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Por Luiz Carlos Merten
Atualização:

Comemoram-se no domingo, 24, 101 anos do início dos acontecimentos que levaram ao genocídio armênio. Comemoram-se? “Na verdade, não há o que comemorar numa data tão triste para o povo da Armênia”, diz o diretor e roteirista francês Robert Guédiguian, numa entrevista por telefone, de Paris. Guédiguian, de origem armênia, conversou com o repórter antes de seguir para o aeroporto. Voou para Los Angeles, na Califórnia. “Estou indo apresentar Uma História de Loucura nos EUA, e escolhemos Los Angeles porque tem uma comunidade armênia muito forte.” O filme estreia no Brasil nesta quinta, 21.

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Em 24 de abril de 1915, 250 intelectuais e lideranças foram presos em Constantinopla, atual Istambul, capital do Império Otomano. Defendiam a independência da Armênia, que era um enclave cristão dentro do império que se fragmentava. Nesse quadro, o partido nacionalista dos ‘jovens turcos’ implantou a política do panturquismo, estabelecendo uma cultura que privilegiava os povos turcos e turcodescendentes, em detrimento de todos os demais. As prisões de 24 de abril foram só um começo e até 1923 estima-se que 1,5 milhão de armênios tenham sido mortos no que ficou conhecido como genocídio armênio. O governo turco nunca reconheceu os massacres.

Guédiguian vive em Marselha com a mulher, a atriz Ariane Ascaride, e tem um grupo de amigos com os quais faz teatro e cinema. O grupo acredita na militância. Como o inglês Ken Loach, para citar outro exemplo, Guédiguian se define como de esquerda num mundo em que isso passa por anacronismo. Referências à Armênia - e ao massacre - sempre estiveram presentes em seus filmes, mas, em 2006, há dez anos, ele fez, com a mulher, Armênia, sobre o retorno às origens. Três anos depois, foi a vez de L’Armée du Crime, O Exército do Crime, seu filme sobre a resistência, durante a 2.ª Grande Guerra. Um dos resistentes era Manouche, o grande poeta Missak Manouchian, lendário combatente que se sacrificou pela França.

“Depois disso, ficou claro para mim que tinha de fazer um filme sobre o genocídio. O desafio era o viés. Nos últimos anos e décadas, o genocídio foi saindo das sombras e ganhou atenção mundial. Mesmo assim, não queria correr o risco de fazer uma coisa encravada no passado. Queria interessar ao público de hoje. Ao descobrir a história de José António Gurriarán, percebi que havia encontrado meu fio de Ariadne.” E Guédiguian cita, intencionalmente, seu filme anterior com Ariane Ascaride.

Em 30 de dezembro de 1980, o jornalista espanhol José António Gurriarán saiu do prédio que abriga a redação do diário Pueblo e tomou a direção da Gran Via, em Madri. Ia ao encontro da mulher. Haviam programado ver um filme de Woody Allen. Uma explosão destruiu a fachada do escritório espanhol da Swissair. Ele correu para uma cabine telefônica para avisar a redação. No local, havia uma segunda bomba, que decepou as pernas de Gurriarán. Terroristas armênios assumiram a autoria. Gurriarán passou a devorar todo material que encontrava sobre o genocídio. Tornou-se uma obsessão se encontrar com os autores do atentado, o que ele fez, em Beirute. Escreveu um livro – La Bomba.

“Era o viés que buscava. Sou internacionalista. Em absoluto queria fazer um filme para estimular o ódio. Tem gente que me diz que o filme – Uma História de Loucura – é uma utopia. Um homem atingido por uma bomba é praticamente adotado pela família do homem que detonou o artefato. O que respondo é ‘leiam o livro de José António’. Existem fantasias muito mais reais que gostaríamos de admitir”, diz o diretor Robert Guédiguian. Seu filme não conta a história de Gurriarán, mas é inspirado nele. “Toda a pesquisa da parte inicial e, depois, a iniciação do terrorista, as divisões do movimento armênio, tudo é acurado, documentado, real. Mas a família francesa de Aram (o militante) é fictícia.”

Guédiguian admite que criou essa figura de mãe pensando em oferecer outro grande papel à sua companheira, na arte e na vida, Ariane Ascaride. “O fio de Ariadne já remetia à mitologia grega. Acho que aqui avanço um pouco. A mãe de Uma História de Loucura – filme que estreia nesta quinta, 21 – é uma personagem de tragédia grega. Foi assim que a criei, foi assim que Ariane a interpretou.” O filho é interpretado por um iraniano que nunca havia feito cinema – Syrus Shahidi. A companheira de armas com quem se envolve é libanesa – Razane Jammal. São de uma beleza de doer. O espectador torce por eles, e o que ocorre somente reforça o clima de tragédia. “Você tem razão”, diz o diretor. “Buscamos muito até chegar a esses dois, porque queríamos esse sentimento de tristeza que você experimentou. Por que eles não podem ser felizes? Que mundo é esse?”

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O que Guédiguian não podia prever, ao se lançar ao projeto, foi o que ocorreu. “Colocamos mais que nossa energia nesse projeto – nosso sangue. Não é só um filme sobre o genocídio armênio. É sobre a geopolítica mundial, sobre os meandros da diplomacia entre nações. E é sobre terrorismo. Que direito temos de matar inocentes? De considerar todas essas mutilações e mortes apenas danos colaterais?” Guédiguian fez pré-estreias com debates em 40 cidades de toda a França. Encontrava plateias motivadas. O filme estreou em 11 de novembro do ano passado e dois dias depois ocorreram os atentados em Paris e Saint Denis. “Salas foram interditadas por segurança. As pessoas foram para a frente dos televisores, ou para a ruas manifestar solidariedade. Todo o nosso esforço ruiu, mas não estou reclamando disso. Reclamo da tragédia toda, e acho que o filme se coloca no olho do furacão com uma proposta de entendimento. Algo tem de mudar. A escalada de ódio, de ambos os lados, só gera violência.”

Grégoire Leprince-Ringuet faz o ciclista atingido pela explosão que Aram provoca. Perde o movimento das pernas. É acolhido pela mãe de Aram (Ariane Ascaride). O desfecho de Uma História de Loucura não vem por aí. Tem muita narrativa depois disso. Historicamente, (partido dos) jovens turcos virou sinônimo de radicalismo. Na eclosão da nouvelle vague, há mais de 50 anos, os críticos aguerridos, como François Truffaut, eram os ‘jeunes turcs’. Guédiguian dedica Uma História de Loucura a seus amigos turcos. “Não é ingenuidade nem utopia. Sou internacionalistas e sei que, na Turquia, como em todo o mundo, existem correntes interessadas no entendimento. Em vez de achar que é fantasia, devíamos pensar em quem lucra com o desentendimento. Esse mundo poderia ser um lugar bem melhor, acredite.”  

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