ESTREIA-Em 'Moscou', Coutinho radicaliza jogo de cena

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Por Redação
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Eduardo Coutinho é figura única no cinema brasileiro. Mais do que um documentarista, é um investigador. Seus longas, como "Cabra Marcado Para Morrer" (1984), "Santo Forte" (1999), "Edifício Master" (2002) e "Peões" (2004), nada mais são do que conversas ou, como diz o cineasta, pessoas contando histórias. Em 2007, no entanto, surpreendeu com um filme que parte de uma idéia simples para atingir resultados complexos, explorando uma fronteira tênue entre realidade e ficção ou, até mesmo, encenação. Trata-se de "Jogo de Cena", no qual mulheres contavam histórias de suas vidas e/ou representavam episódios vividos por outras pessoas. Em seu novo trabalho, "Moscou", que estreia em São Paulo e Rio, Coutinho vai além nessa sua investigação e rompe qualquer linha que possa existir entre o real e o encenado. Coutinho propôs ao grupo mineiro de teatro Galpão documentar o ensaio de uma peça de sua escolha, no caso "As Três Irmãs", clássico russo de Anton Tchecov. Já o diretor do ensaio foi escolhido pela trupe: Enrique Diaz, com quem eles nunca haviam trabalhado. O resultado que se vê na tela é singular. O filme não é o making of da montagem da peça, mas uma investigação sobre a relação entre arte e realidade. Numa leitura mais profunda, busca explorar a importância da memória na vida do indivíduo. Logo no começo do filme, numa de suas poucas intervenções, Coutinho deixa claro para os atores do Galpão e para o público do filme que o objetivo não é montar "As Três Irmãs", mas trabalhar o processo de montagem de uma peça que nunca será encenada. O que "Moscou" traz, então, são ensaios e exercícios que Diaz propõe aos atores, como se estivesse montando a peça. Mas Coutinho não é um documentarista que se contenta em colocar a câmera na frente de seu objeto, no caso os atores, e simplesmente documentar. Suas pesquisas vão bem além de simplesmente mostrar como se monta uma peça. Isso, aliás, passa longe de "Moscou". O filme explora a inquietação da alma humana. O texto de Tchecov, escrito no início do século 20, mostra uma família em decadência que teve de abandonar a capital russa e mudar-se para o interior. O sonho de voltar para a cidade grande persegue os personagens. Dessa forma, Moscou representa não apenas a riqueza perdida, as glórias do passado, como também a utopia, o inatingível. Na peça, há um irmão, Andrei, que vive à sombra delas. O sonho do rapaz é ser professor na universidade de Moscou, assim como o delas. No palco, três atrizes do grupo Galpão interpretam Olga, Masha e Irina. Outros atores e atrizes revezam-se nos demais papéis - embora nem todos os personagens de Tchecov tenham chegado à montagem final de "Moscou". As peças e contos do escritor russo giram em torno de pessoas simples e suas vidas sem muitas alegrias, consumidas pelo cotidiano. Coutinho também é um cineasta que sempre trabalhou com a vida das pessoas simples, força motriz de seu cinema. No processo de ensaio com os atores, um dos exercícios propostos por Diaz consiste na apresentação de fotos pessoais que contam histórias a partir das imagens. Numa das primeiras cenas, um rapaz mostra uma fotografia e diz ser de Moscou - jamais saberemos se é verdade, mas isso não importa. Ele conta que morou na capital russa e, quando voltou, anos mais tarde, sentiu muita dor ao ver o cinema que frequentava sendo demolido. A fala é também metafórica. "Moscou" é especialmente um filme sobre a desconstrução da arte: observar o teatro por partes, o que compõe uma encenação, sem nunca chegar ao clímax, o contato com o público. Coutinho radicaliza a proposta de "Jogo de Cena", que era um filme de diálogo mais fácil com o público, até mesmo mais popular. Mas, se por um lado "Moscou" é mais cerebral ao explorar, entre outras coisas, a relação entre a vida, a arte e a memória, por outro, a experiência é recompensadora em igual medida a quem se dispuser a embarcar nessa viagem. (Por Alysson Oliveira, do Cineweb) * As opiniões expressas são responsabilidade do Cineweb

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