ESTREIA-'Cairo 678' conta luta de mulheres egípcias contra abuso

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Por Redação
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País de ponta nas recentes rebeliões da Primavera Árabe, o Egito pouco exibe sua cinematografia no Brasil, muito menos no circuito comercial. Uma saudável exceção chega com o drama "Cairo 678", que revela, ainda que de forma ficcional, parte da realidade urbana e social efervescente daquela nação, assim como um talentoso novo diretor, o estreante em longas Mohamed Diab. O filme foi premiado nos festivais de Chicago, Dubai e no Asia Screen Awards 2011 e estreia apenas em São Paulo. Com uma pegada semidocumental, Diab retrata o caótico trânsito do Cairo para desenvolver a história de três mulheres de diferentes formações e classes sociais que foram vítimas de um problema recorrente: o abuso sexual. Fayza (Boshra) é uma sacrificada funcionária pública, mãe de dois filhos e cujo marido, o policial Adel (Bassam Samra), desdobra-se em dois empregos para dar conta das despesas familiares. Diariamente, Fayza toma o ônibus que dá título ao filme, o 678, uma linha precária e disputada em que os passageiros que conseguem embarcar viajam apertadíssimos, em veículos velhos, sujos e perigosos. Para as mulheres, há outro problema crônico -diariamente, elas são bolinadas por homens, sem que ninguém tome providências. As poucas que ousam protestar são tratadas como histéricas, não raro tendo que completar seu trajeto a pé. É o que costuma fazer Fayza, que não consegue manter a mesma passividade que a maioria. A ponto de explodir com esses abusos diários, Fayza ouve na televisão o anúncio de um curso de autodefesa feminina conduzido por Seba (Nelly Karim). Rica e culta, Seba não escapou ao abuso, sofrido numa comemoração da vitória da seleção egípcia de futebol, no meio da multidão, sem que o marido (Ahmed El Fishawy) pudesse defendê-la. Pior ainda para Seba foi a atitude do marido, que se sentiu ferido em seu orgulho masculino, faltando com o apoio a ela, o que motivou a separação do casal. Desde então, Seba, uma designer de joias, vive sozinha e dá palestras para estimular as mulheres a relatar os abusos e se defender. O que, a princípio, atrai poucas interessadas. Atendente de telemarketing que tenta se tornar comediante stand up, Nelly (Nahed El Sebaï ) também foi vítima do ataque de um homem, testemunhado por sua mãe. As duas conseguiram imobilizá-lo e, junto ao noivo de Nelly, Omar (Omar El Saeed), levaram-no à delegacia, para uma inédita denúncia por assédio sexual. Lá são desestimulados pelo próprio policial e forçados a levar o agressor eles mesmos a outra delegacia, para finalmente registrarem a queixa que sustentará um processo. Fica muito claro nos três casos que a vergonha pelo ataque recai sobre as vítimas, mais do que sobre os agressores, contribuindo para o silêncio das primeiras. Por querer levar adiante o processo, Nelly passa a ser pressionada pela família do noivo, depois pela sua própria, já que todos concordam que isso pode prejudicar seu futuro casamento. As figuras masculinas do filme simbolizam diversas posturas. Enquanto o noivo de Nelly é francamente solidário com ela, o marido de Fayza sequer imagina o que a mulher passa no ônibus e ainda a pressiona para satisfazê-lo sexualmente. Mas a figura masculina mais peculiar é o investigador Essam (Maged El Kedwany, ator premiado nos festivais de Chicago e Dubai em 2011). Ao longo da investigação sobre os misteriosos ferimentos infligidos a homens em ônibus -e que estão sendo causados por Fayza-, Essam incorpora de forma às vezes cômica, às vezes autoritária, uma ambiguidade que finalmente representa a própria negligência das autoridades em relação aos abusos machistas e uma das razões de sua impunidade. Baseado em fatos reais e apesar do tom quase didático, o filme de Diab toma o pulso de uma sociedade em crise em que alguns, como a traumatizada Fayza, finalmente perderam a paciência e tomaram a justiça com as próprias mãos. Mas se tem o cuidado de não perder de vista a luta cívica de Nelly, que insiste em cobrar da justiça uma atitude diante das agressões diárias às mulheres. (Por Neusa Barbosa, do Cineweb) * As opiniões expressas são responsabilidade do Cineweb

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