ESTREIA-'Cabra Marcado para Morrer' tem cópia restaurada em SP

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Por Redação
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"Cabra Marcado para Morrer" (1984), de Eduardo Coutinho, é, por muitas razões, um filme que virou mito. Sem deixar de ser um grande, inesquecível, imperdível filme, que volta a circular em cópia restaurada, em São Paulo. Quando o projeto começou, no início dos anos 1960, pensava-se numa obra de ficção, em que camponeses reencenariam uma história real, a do líder camponês João Pedro Teixeira, fundador da Liga Camponesa de Sapé (PB), assassinado a mando de latifundiários em 1962. Mais de uma vez, o projeto foi atravessado pela vida e pela História. Quando finalmente o cineasta Eduardo Coutinho teve os recursos para a filmagem, produzida pelo Centro Popular de Cultura da UNE e o Movimento de Cultura Popular (PE), já corria o ano de 1964. As filmagens foram interrompidas pela ditadura que baixou sobre o país, houve imagens e câmeras perdidas, membros da equipe presos ou fugitivos. Uma parte do material filmado milagrosamente se preservou. Por isso, "Cabra..." já entrava no território da lenda. A obra sobreviveu a peripécias que, caso pertencessem à ficção, pareceriam inventadas -- caso de latas do filme escondidas debaixo da cama de um general, pai do cineasta David Neves, negativos salvos por terem sido enviados a revelar no Rio e ocultos na Cinemateca do MAM sob um título falso, "A Rosa do Campo". Mais dramática do que a história do próprio filme, sem dúvida, foi a diáspora imposta pela ditadura à família do líder assassinado -- sua mulher, Elizabeth Teixeira, fugida também com nome falso para o interior do Rio Grande do Norte, carregando apenas um dos 11 filhos. Os demais foram entregues aos cuidados do avô e dos tios, espalhando-se depois por vários Estados do Brasil. Na cópia agora impecavelmente restaurada da produção, originalmente concluída em 1984, reencontram-se os vários tempos desta longa e trágica saga, símbolo das incertezas e contradições da nação, mas também testemunho da resistência de seus habitantes e de seus artistas. Por muitas razões, este "Cabra..." tornou-se um marco, inclusive inaugural da carreira do mais famoso documentarista do Brasil (que aqui abandona o "Globo Repórter"). Uma delas, a maneira como os vários tempos convivem dentro da trama -- as imagens restantes do filme inicial de 1964; as sucessivas retomadas do projeto, pela teimosia de Coutinho, no início dos anos 80, após a abertura política proporcionada pela anistia de 1979; e agora, em 2012, as cores reencontradas na restauração, o som audível como nunca. No reencontro de Elizabeth e na sua progressiva transformação diante da câmera, ao reencontrar a identidade sufocada da antiga líder camponesa, o filme encontra sua espinha dorsal, incorporando ainda o diretor-personagem, com um Coutinho, ainda de cabelos pretos, em cena, uma inovação tremenda nos documentários dos anos 1960. Nos sobressaltos que interrompem as filmagens, seja em 1964, seja no início dos anos 1980, a narrativa encontra um fio, reassentando as dores, as cicatrizes e afirmando a sobrevivência não só de seus personagens e diretor, como a do próprio filme, que assume em seu discurso seus percalços e hesitações. O próprio Coutinho aqui se sintetiza e antecipa -- estão impressos nos fotogramas do "Cabra..." o Coutinho militante do CPC de 1964; o Coutinho forjado no "Globo Repórter", que ali conheceu melhor o Nordeste; o Coutinho mestre da arte da conversa, que amadurecia o futuro diretor de "Santo Forte" (1999), "Edifício Master" (2002), "Peões" (2004) e "Jogo de Cena" (2007). Se por nada mais fosse precioso, como de fato é, este "Cabra..." mereceria o adjetivo por condensar com tal autenticidade as dimensões individual, política e afetiva de todos os envolvidos. E assim atravessa a fronteira em que o documentário se torna vida e se transforma, ele mesmo, em História. (Por Neusa Barbosa, do Cineweb) * As opiniões expressas são responsabilidade do Cineweb

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