‘Estou Pensando em Acabar com Tudo’ flerta com terror, mas tensão fica no campo psicológico

Filme dirigido por Charlie Kaufman na Netflix é adaptado de um romance homônimo do canadense Iain Reid

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Por Luiz Zanin Oricchio
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O título em si já é um tanto perturbador. Estou Pensando em Acabar com Tudo pode soar como o pensamento de um suicida. Talvez algo também sofrido, mas mais ameno: terminar um relacionamento. Parece nessa segunda possibilidade que pensa a personagem principal do filme do mesmo nome, dirigido por Charlie Kaufman, adaptado de um romance homônimo do canadense Iain Reid, aqui editado pela Fábrica 231. Kaufman é autor oscarizado do roteiro de Brilho Eterno de uma Mente sem Lembranças, e diretor cult de Anomalisa e Sinédoque New York, entre outros filmes-cabeça. Sua nova obra está disponível na Netflix, e sua estranheza e possíveis significados e simbologias vêm bombando nos sites de cinema e nas redes sociais. 

Cena do filme 'Estou Pensando em Acabar com Tudo', de Charlie Kaufman Foto: Netflix

A aparente protagonista (vivida por Jessie Buckley) atende por vários nomes ao longo da trama, Lucy, Louisa, Lucia ou Ames. Ela está a bordo de um carro com o namorado recente, Jake (Jesse Plemons), na estrada em direção à casa dos pais do rapaz. Neva. Aliás, desaba uma nevasca incessante ao longo da história. Então, coisas bizarras começam a acontecer. Em especial quando chegam à casa do pai (David Thewlis) e da mãe (Toni Collette) de Jake, perdida no meio rural. Casa antiga, isolada pela neve, presta-se a todas as condições amedrontadoras já concebidas pelo cinema, incluindo um (talvez) tétrico porão.  Em certo sentido, Estou Pensando... é um filme de suspense psicológico. Flerta, no entanto, com o gênero terror. Mas é pista falsa: não se trata do terror convencional, com sustos ou aparições sobrenaturais. Essas são substituídas por um deslocamento da trama em relação às ligações lógicas entre acontecimentos e personagens. Por exemplo, os pais de Jake, no começo, formam um casal de meia-idade, ainda relativamente jovem. Sem mais, viram um par de anciãos, ao passo que Jake e sua namorada permanecem com a idade que tinham desde o início. Como se houvesse um deslocamento no tempo, um “vento” que permitisse ir para a frente e para trás, possibilidade imaginada pela própria personagem da moça. Essa também é um personagem paradoxal, que parece estar no presente e em algum outro lugar do tempo. Não se pode descartar que seja imaginada por alguém, ou faça parte do sonho de outro personagem. Estamos num mundo de sombras.  O talento de Kaufman aparece na composição da atmosfera. O filme não é assustador por alguma coisa que acontece, mas por aquilo que o espectador é levado a supor que pode acontecer. O suspense, a perturbação das expectativas residem mais no “clima”, desenhado pela imagem e pela banda sonora, que nos fatos propriamente ditos. É também um filme em camadas, adensado por uma vaga incessante de referências e citações. Durante a viagem, Jake cita o escritor William Wordsworth e faz um trocadilho intraduzível sobre o valor das palavras, expressão embutida no sobrenome do poeta. Visitando o porão da casa, a moça vê uma pilha de livros encimada por um grosso volume de Pauline Kael, crítica da revista New Yorker durante muito tempo e figura icônica da intelligentsia nova-iorquina. Mais tarde, o casal discute longamente o filme Uma Mulher sob Influência e logo se descobre que seus argumentos são uma citação ipsis litteris de um texto de Pauline sobre a obra de John Cassavetes.  As aproximações cinematográficas também são bastante evidentes. O personagem Jake remete a Jack Nicholson, intérprete de Jack Torrance em O Iluminado, de Stanley Kubrick. Quando Torrance está enlouquecendo no Hotel Overlook, isolado pela neve, repete a frase obsessiva em sua máquina de escrever: “All work and no play makes Jack a dull boy”. Em mais de um sentido, Jake pode ser esse rapaz bobalhão, mas que parece às vezes perigoso. Ou, pelo menos, o espectador imagina que sim.  Claro, há um tanto de Luis Buñuel, o clássico bruxo espanhol da estética surrealista, imprimindo novos sentidos e direções a narrativas lineares. Quebrando-as, por assim dizer, e deixando o inconsciente fazer seu trabalho e fazendo emergir novas possibilidades. Por fim, alusões ao mestre contemporâneo da estranheza aplicada às imagens em movimento, David Lynch, de Twin Peaks e O Império dos Sonhos. Tudo junto ao diálogo com cultura pop, uma das obsessões de Kaufman, citando marcas populares, filmes de Robert Zemeckis, jingles e imagens publicitárias imiscuídas no belo registro fotográfico da obra.  Quem quiser passar por cima, ou por baixo, dessas camadas de citações e referências pode fazê-lo sem peso na consciência e sem prejuízo para a fruição da obra. Apenas fique atento a personagens que entram na parte final e podem mudar o significado do conjunto da trama. No mais, deve deixar-se levar pelo sonho (ou pesadelo) e sentir naquele fluxo visual associativo as alusões a alguns pontos cruciais da condição humana. A saber, a sempre problemática relação com o outro, o temor da solidão, mas também da perda de identidade, a complexidade do funcionamento da mente, a sanidade e a loucura, a angústia da morte, a busca por um sentido para a vida, idealização que pode muito bem não existir.  O fluxo contínuo de situações bizarras, bastante carregado a partir de certo ponto, pode entorpecer a experiência de perturbação do espectador. Em boa dosagem, o estranho estimula a imaginação. Em demasia, pode desandar a receita. Kaufman fica no limite. 

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