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Estilos opostos marcam segundo dia em Veneza

O cineasta português Manoel de Oliveira mostrou um belo retrato do Padre Vieira, com Lima Duarte no elenco; Robert Altman decepcionou e o coreano Ki-duk Kim surpreendeu com a dureza de algumas passagens de Seon (A Ilha)

Por Agencia Estado
Atualização:

Um Robert Altman um tanto decepcionante, um Manoel de Oliveira de classe e um coreano surpreendente fizeram o colorido do segundo dia de mostra competitiva do Festival de Veneza. Altman trouxe ao Lido seu Doctor T. and the Women, uma sátira amorosa ao modo de vida texano. Oliveira, que faz 92 anos em dezembro, revela, em Palavra e Utopia, sua visão pessoal do universo do padre Antônio Vieira. Seon (A Ilha), do coreano Ki-duk Kim, é um filme radical, de passagens tão duras que a sessão teve de ser interrompida para que uma espectadora que passou mal fosse retirada da sala. Doctor T. era um dos mais esperados filmes deste festival. Tanto assim que houve correria e empurra-empurra antes da sessão, realizada na sala Palagalileo, a maior de Veneza. A confusão se justificava não só pela aura de Altman, um realizador com obras-primas como Nashville e Short Cuts no currículo, mas também pela presença do ator Richard Gere no elenco. Num ano em que as estrelas de Hollywood parecem estar esnobando o Lido (exceção feita a Clint Eastwood e sua turma), o público italiano parece estar sedento de glamour. No entanto, o filme foi quase uma decepção. Quase, porque dificilmente Altman põe sua assinatura num projeto pífio. Mas, no quadro de sua cinematografia, Doctor T. é um filme menor. Não se trata de nenhuma cobrança excessiva. Simplesmente compara-se Altman com Altman, o que é justo. Nessa medida, a esperada visão corrosiva sobre a sociedade texana fica aquém do que se poderia esperar de quem já fez Nashville ou Mash. Isso acontece, talvez, porque Altman carregue na caricatura, um recurso válido, mas que, em excesso, tira força da idéia original. Assim, se o ginecologista vivido por Gere não deixa de ser uma boa idéia - o homem que convive demais com as mulheres, mas não as entende -, suas partners nessa comédia que se quer ácida são peruas tão estilizadas que parecem improváveis. Na concorrida coletiva que concedeu, o diretor disse que as mulheres de Dallas são assim mesmo, "teatrais, histriônicas, moradoras de uma cidade de exibição, sem mar, sem montanha, com um único marco histórico, que é o de ter sido palco do assassinato de John Kennedy, e um único valor, que é o dinheiro". Elegância - Verdade que se a crítica de Altman parece às vezes óbvia demais, não falta elegância no estilo do filme, visto como um todo. Aos 75 anos, Altman continua o mesmo, um soberbo realizador. Emprega como ninguém a música e faz com que os próprios movimentos de câmera sejam guiados por ela. Por isso, seu cinema tem tanto ritmo, tanta fluidez. É um verdadeiro prazer assistir a seus filmes, mesmo que tratem de peças menores no conjunto de uma obra maior. Mais radical, como projeto, é A Ilha, do coreano Ki-duk Kim, que fala do encontro entre dois desesperados. Tudo se passa nessa espécie de ilha de fantasia imaginada pelo autor. Um local de pequenas casas flutuantes, usadas para pescaria ou como motel pelos freqüentadores. Um dia chega lá um policial foragido, Hyun-Shik, que matou sua ex-namorada e está pensando em se suicidar. Ele é atendido pela garota que trabalha no local Hee-Jin, mix de barqueira, fornecedora de comida e prostituta. Ela evita que Shik se mate e acaba nascendo entre os dois uma paixão exclusivista e avassaladora. O filme trabalha num clima levemente fantástico, alternando cenas realistas com outras que parecem saídas de um sonho - ou de um pesadelo. A sua faceta naturalista foi a que mais causou polêmica no Lido, principalmente em duas seqüências de maltratos infligidos a animais. Já o sofrimento dos seres humanos não foi tão notado. A exceção foi a espectadora sensível que não suportando uma insólita tentativa de suicído do protagonista, saiu carregada, branca como papel de boa qualidade. Trabalhando em registro oposto de A Ilha, há Palavra e Utopia, um exemplo perfeito do cinema verbal de Manoel de Oliveira. Não há nenhum sentido pejorativo nessa qualificação. Pelo contrário. Oliveira é comovente na maneira como procura defender sua concepção de cinema - e de mundo. Um velho humanista, que acredita na sobrevivência e na força da palavra, em uma época que tudo faz para desvalorizar o trabalho do sentido, da reflexão e da representação. Cinema literário, em que texto e imagem se completam e dialogam. Talvez não houvesse, para esse tipo de cinema, personagem tão adequado quanto Antônio Vieira, um mestre da retórica, que colocou a palavra a serviço dos seus bons propósitos no mundo. Vale lembrar que Vieira já tinha sido objeto de outro filme, este do cineasta brasileiro Júlio Bressane, Os Sermões. Clássico - Em entrevista, Oliveira afirmou que não conhece a produção de Bressane. Mas o ator Lima Duarte (um dos três intérpretes do padre, em Palavra e Utopia), conhece. E esclarece a diferença entre um projeto e outro: "Bressane é um inventor e faz uma interpretação muito pessoal de Vieira; Manoel de Oliveira é um clássico, ateve-se mais aos textos do padre." Melhor definição, impossível. Palavra e Utopia faz brilhar na tela, e pela voz dos atores, o texto cristalino de Antônio Vieira. Vieira é interpretado, em épocas diferentes de sua vida, por Ricardo Trepa, Luiz Miguel Cintra e Lima Duarte. Trata-se de um vida conduzida pelo amor às palavras. Uma técnica e uma arte que Vieira procurou aperfeiçoar ao longo do tempo, lapidando sua retórica com o cuidado de um guerreiro que afia sua espada. A relativa pouca atenção que Oliveira dedica aos dados factuais da biografia de Vieira indica sua leitura pessoal dessa trajetória: o essencial está mesmo no texto. O problema é retirar dessas palavras antigas a poeira da tradição e devolver a elas o vigor que nunca perderam. Trabalho de um utópico, como Oliveira se define: "Tenho esse ponto de contato com Vieira, pois amo a utopia e detesto a realidade, pelo menos do jeito que ela se apresenta para nós neste triste final de milênio." Sobre sua opção por um cinema difícil, na contracorrente, Oliveira destaca outra identificação com Vieira: "Como ele foi molestado pela Inquisição em seu tempo, eu também me sinto pronto a me submeter à inquisição cinematográfica da nossa época." Cheio de energia e com a serenidade de seus quase 92 anos, parece não temer nenhum Torquemada pós-moderno.

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