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Escolha em Brasília contempla o melhor do cinema no País

Premiação bem distribuída foi contestada por cineastas mas fez com propriedade o resgate de caros valores nacionais, esquecidos em outros festivais, ao premiar Samba Riachão e relativizar a unanimidade de Lavoura Arecaica

Por Agencia Estado
Atualização:

Entrou dendê no tabule e, em decisão surpreendente, o júri do 34º Festival de Brasília fez o favorito Lavoura Arcaica dividir o prêmio de melhor filme com o baiano Samba Riachão, de Jorge Alfredo. Como Riachão acumula também o troféu de melhor filme segundo a votação popular deve ser considerado o grande vencedor do festival, embora tenha obtido menos estatuetas do que Lavoura. O resto da premiação, como se previa, ficou dividida entre os diversos concorrentes. O melhor diretor foi Beto Brant por O Invasor. O troféu de ator foi para Werner Schünemann, de Netto Perde sua Alma, e Selton Melo, de Lavoura Arcaica. Sabrina Greve, de Uma Vida em Segredo, foi considerada a melhor atriz. Lavoura ficou ainda com os dois prêmios de coadjuvante: ator (Leonardo Medeiros) e atriz (Juliana Carneiro da Cunha). O júri resolveu outorgar um prêmio especial para ator revelação para Paulo Miklos, em O Invasor. Os prêmios técnicos também confirmaram a tendência distributiva do júri: fotografia ficou com Walter Carvalho, por Lavoura Arcaica, montagem com Tina Safira, por Samba Riachão, e direção de arte foi para Adriana Nascimento Borba, de Netto Perde Sua Alma. Trilha sonora contemplou Pavilhão Nove, Tolerância Zero, Professor Antena e Paulo Miklos, que em parceria fizeram a música de O Invasor. Melhor música original foi para Marco Antonio Guimarães, de Lavoura Arcaica, e melhor técnico de som para Jorge Saldanha, de Uma Vida em Segredo. O destaque da festa de encerramento, que aconteceu no Teatro Nacional, foi o cantor e compositor Riachão, que magnetizou o público e declarou que a melhor coisa que levava de Brasília era o silêncio da platéia. Explica-se: após a exibição do documentário em sua homenagem, na mágica noite de sábado no Cine Brasília, Riachão, subiu ao palco e interpretou, sem acompanhamento, uma música de sua autoria para as mais de mil pessoas presentes, que o ouviram em religioso silêncio. Na cerimônia de premiação, repetiu a dose. E foi delirantemente aplaudido. O cantor, que tem 80 anos, tornou-se a grande estrela do festival. E isso não é pouco para um evento que contou com globais como Selton Mello e Malu Mader entre seus convidados. Premiação interessante - A premiação proposta pelo júri oficial é uma peça talvez tecnicamente constestável, mas muito interessante se analisada do ponto de vista simbólico. Ela relativiza o conceito de obra-prima indiscutível aplicado a Lavoura Arcaica, cuja passagem por Brasília se supunha seria um passeio e por pouco não termina em naufrágio. Reabilita os cinemas regionais (tanto com Netto Perde sua Alma como com Samba Riachão) e os tira do papel de figurantes a que costumam ser relegados. É aquele negócio: todo mundo adora reafirmar que a cultura brasileira é diversa, regionalizada, etc. desde que isso não atrapalhe hegemonias bem estabelecidas. Como aquele burguês, personagem de Gide, que dizia ser a favor das revoluções, mas pedia que não pisassem em seu jardim. Pois, bem, tanto Netto como principalmente Riachão, abriram buracos em um bunker aparentemente inexpugnável. Confiáveis enquanto permanecessem na periferia, atacaram o centro do sistema, como o personagem de O Invasor. Samba Riachão foi adorado pelo público (tanto que ganhou esse prêmio) e também pela crítica e convidados do festival. Mas ninguém se atrevia a dizer que merecia ganhar o troféu principal. Ou seja, é aquele tipo de filme para ser amado, não para ser premiado. O júri pôs abaixo esse dogma negativo que limita o alcance de filmes realmente populares. Outra lição deste ano, e esta em sentido contrário: o cinema de Julio Bressane é realmente inassimilável. Mesmo seu solitário prêmio de roteiro era contestado nos bastidores. E, no entanto, Dias de Nietzsche em Turim está no mesmo patamar estético dos melhores trabalhos deste festival. Mas enfim, essa votação polêmica do corpo de jurados (o exibidor Adhemar Oliveira, os pesquisadores João Luiz Vieira e Ivana Bentes, a atriz Cristina Aché, e os cineastas Orlando Senna, André Luiz da Cunha e Carlos Reichenbach) deixou todo mundo insatisfeito, com exceção dos baianos e gaúchos. Apesar do bom-mocismo dos discursos protocolares, era visível o mal-estar durante e depois da cerimônia. Cineastas preteridos davam furiosas declarações em off e mesmo a organização do festival ficou contrariada com a divisão do prêmio principal. Painel - Mas, premiação à parte, o que sobra desta 34ª edição do Festival de Brasília? Sem dúvida um painel bastante interessante daquilo que de melhor se está fazendo no cinema brasileiro. Claro, um festival não é uma amostragem completa, mas um resumo da excelência da cinematografia, ou assim deveria ser. Não entram nele os produtos mais diretamente comerciais, embora se possa argumentar que a oposição entre arte e negócios seja hoje mais artificial do que nunca, etc. Certo, mas o fato é que não se verá, em festival sério, o último lançamento da Xuxa, como não se viu, nos anos 80, os sucessos dos Trapalhões. Esses produtos, que fazem a correia de transmissão entre os sucessos da TV e o cinema são necessários, mas dificilmente se pode dizer que atingem o nível de complexidade pedido a um concorrente de festival, em especial quando este é o mais importante do calendário brasileiro. Assim, os seis concorrentes deste ano situam-se num nível que vai do bom ao excelente. Lavoura Arcaica, Netto Perde sua Alma, Uma Vida em Segredo, Samba Riachão, O Invasor e Dias de Nietzsche em Turim compuseram esse interessante painel da cinematografia brasileira, uma amostragem rica em diversidade de estilos e variantes regionais. A diversidade temática: Lavoura procura ir ao coração do conflito existencial humano, com sua vocação trágica examinada no seio de uma família árabe-brasileira. Netto recupera a dimensão histórica com sua reinterpretação da Revolução Farroupilha. Uma Vida em Segredo busca na vida pequena da protagonista uma condição básica da existência. Político, mas à maneira de um thriller policial, O Invasor confronta diretamente o abismo de classes da sociedade brasileira. Samba Riachão mostra a música e a vocação de alegria de parte do povo brasileiro, de uma maneira que resiste ao clichê. Dias de Nietzsche em Turim ocupa um lugar excêntrico, com sua preocupação intelectual por um autor de peso, desaparecido há mais de um século. Estilisticamente, o quadro é também muito heterogêneo. Lavoura incorpora o barroquismo da narrativa de Raduan Nassar e o aprofunda, num resultado que gerou unanimidade mais do que controvérsias. Netto trabalha seu épico em registros diferentes, da pastoral lírica à clássica influência do western. Uma Vida em Segredo surpreende por seu despojamento e busca minimalista. O Invasor surpreende mais ainda, pela agilidade da narrativa e por seu corajoso corpo-a-corpo com uma realidade atroz como a da cidade de São Paulo. Samba Riachão documenta com sobriedade um personagem que seria fácil levar para o lado do folclore e portanto esvaziar de sua complexidade. Dias de Nietzsche é mais um passo da obra em movimento de Julio Bressane, um comentador modernista da cultura, não em seu sentido museológico, mas atento ao que dela permanece ativo no presente. Nietzsche está nesse caso, estiveram anteriormente São Jerônimo e - por que não? - Mário Reis. Enfim, dessa diversidade, tanto estilística quanto temática, deve vir a força do cinema brasileiro contemporâneo. Cabe agora o esforço intelectual de detectar o que há de comum, ou não, nessas linhas esboçadas com tanta clareza neste festival. Curtas - O alto nível dos concorrentes chamou a atenção na competição de longas, mas não na de curtas em 35 milímetros. Não havia filmes indignos, é verdade, mas o número daqueles realmente estimulantes foi bem pequeno. Chamou a atenção o formalismo radical de Glauces - Estudo de um Rosto, de Joel Pizzini, que toma as imagens da atriz Glauce Rocha como um "estudo de caso" das possibilidades expressivas humanas. Ganhou o festival, em resultado contestado pelo público. O trabalho rigoroso com uma tradição e o tempo aparece em Retrato Pintado, de Joe Pimentel, maneira original de tomar uma antiga profissão, o de pintor de fotografias, como ponto de partida para uma reflexão sobre a finitude. Françoise, de Rafael Conde, conquista por sua vocação dramatúrgica e também pela interpretaçao de Débora Falabela, no papel de uma maluquinha que procura pessoas para conversar na estação rodoviária. Finalmente, Zagati, de Edu Felistoque e Nereu Cerdeira, conta, de maneira simples e comovente, a história de um catador de papéis que promove sessões de cinema com seu projetor improvisado. Faltou inovação e, sobretudo, inovação bem-sucedida, aos 12 filmes do formato apresentado este ano. Um velho lugar-comum diz que o curta-metragem é a fonte de renovação do cinema. Mais um clichê que precisa ser rediscutido.

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