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Em tempos de trevas renovadas, Bijou pode recuperar sua vocação

Agora administrado pelo Grupo Satyros, o velho cinema tem tudo para voltar à vida e ocupar o lugar que é seu na vida cultural paulistana

Foto do author Luiz Zanin Oricchio
Por Luiz Zanin Oricchio
Atualização:

Rebatizado com o nome de Satyros Bijou, reabre neste 25 de janeiro um dos pontos clássicos da cidade – o Cine Bijou, tradicional sala de exibição de grandes filmes, centro de debates acalorados em torno da Sétima Arte e também da conjuntura política. O Bijou funcionou regularmente de 1962 a 1996, na praça Roosevelt. Houve uma tentativa de reabertura em 2017, mas acabou não vingando. Agora administrado pelo Grupo Satyros, o velho cinema tem tudo para voltar à vida e ocupar o lugar que é seu na vida cultural paulistana.  Os mais “experientes” (perdoem o eufemismo) nunca se esqueceram do Bijou. Muitos de nós vimos em sua sala, pela primeira vez, alguns clássicos do cinema mundial e nacional. Obras de Ingmar Bergman, Glauber Rocha, Jean-Luc Godard e François Truffaut eram arroz de festa em sua tela. Laranja Mecânica, de Kubrick, Morangos Silvestres, de Bergman, boa parte da filmografia de mestres como Buñuel, Michelangelo Antonioni e Federico Fellini fizeram parte da sua programação. Os clássicos do Cinema Novo também andaram por lá, assim como os filmes alternativos – e provocativos – do Cinema Marginal. 

Cine Bijou em 1985. Foto: Fernado Pimentel/AE

O Bijou cumpria assim sua missão de sala de cinema dito “de arte”, que os franceses chamam de “art et essai”. Ensaio e arte – o que significa trazer o cinema para o centro da discussão intelectual – e política – do País. É sua vocação, como cinema de rua e sala alternativa. Bem diferente dos cinemas convencionais, de shopping, nos quais as pessoas assistem ao filme, comem um lanche, pegam o carro no estacionamento e voltam para casa. São atos individuais. Ou, no máximo, familiares. Não formam comunidade. Não estimulam o debate e a reflexão.  Verdade que o Bijou construiu seu perfil num tempo em que a cultura, a cidade e o próprio Brasil eram diferentes. O Centro Velho era o coração da metrópole. A dois passos do cinema havia a Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP. A faculdade ficava na Rua Maria Antônia, celebrizada pelo movimento estudantil e pelos combates da USP com o rival, a Universidade Mackenzie, situada no lado oposto da rua e da ideologia política. Após a guerra entre as duas faculdades, a USP foi exilada para o câmpus do Butantã e amputada do centro nervoso da cidade. Mas isso foi em 1968. Até lá, os professores e alunos da Filosofia da USP frequentaram o Bijou, assistiram aos filmes e saíram para discuti-los nos inúmeros barzinhos espalhados pela região. O bairro fervia, noite adentro, entre chopes, namoros e polêmicas. 

Sala do novo Cine Bijou, com 75 lugares. Foto: Helcio Nagamine/ESTADÃO

Tudo ficava ali por perto. Além da Faculdade de Filosofia, funcionavam nas imediações os teatros de Arena e Oficina, as livrarias, o antigo Colégio Caetano de Campos com seus milhares de alunos, os jornais. O próprio Estadão tinha sua sede ali por perto, na Rua Major Quedinho. Havia o Bar Redondo, preferido dos artistas, e a Cantina Gigetto, do pessoal do teatro. As boates da rua Major Sertório completavam o quadro efervescente das noites no Centro.  Com a ditadura, as coisas foram mudando de lugar. Durante os anos de chumbo, o que era o laboratório das ideias mais avançadas de transformação social reciclou-se em usina de resistência. Pelo menos foi assim de 1964 a 1968, quando então o regime fechou de vez com o AI-5 e a perseguição política tornou-se a norma de um tempo de trevas. O que restava do Quartier Latin paulistano foi proscrito. Mas, mesmo nos piores anos, manteve-se viva, por ali, uma certa aura de rebeldia e contestação.  Tudo isso mudou nos anos seguintes e o centro velho perdeu sua aura.  Mesmo nesse ambiente desfavorável, deve-se festejar a reabertura do velho Bijou, agora administrado por um grupo de vocação francamente libertária, nos costumes e na política. Sob esse ar de renovação, em tempos de trevas renovadas, o Bijou tem tudo para recuperar a sua antiga vocação que vem lá dos anos 1960. 

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