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Em 'Martírio', Vincent Carelli faz relato da luta dos guaranis-caiovás pela retomada de suas terras

'Tínhamos mata e rios. Hoje, vivemos de cesta básica', diz ele

Por Luiz Carlos Merten
Atualização:

São quase três horas de bombardeio de imagens e informações fortíssimas. Martírio, de Vincent Carelli, que estreia nesta quinta, 13, talvez seja mais uma grande reportagem do que um grande filme, mas, seja o que for, é um programa necessário. Carelli, que assina o filme com Ernesto de Carvalho e Tati Almeida, é cineasta e indigenista. Dirige o programa Vídeo nas Aldeias, que forma cineastas indígenas. Há anos, realizou Corumbiara, que venceu o Festival de Gramado e é belíssimo. Fez na sequência Martírio, que ganhou o prêmio do júri em Brasília no ano passado. Ambos integram uma trilogia com Adeus, Capitão, que ainda está em processo.

Martírio integra a Sessão Vitrine, com que a distribuidora Vitrine, em parceria com a Petrobrás, está levando filmes brasileiros importantes a 21 cidades de todo o País. O lançamento ocorre em 30 salas, o que significa que cidades como São Paulo terão mais de uma alternativa de local e horário. Logo no começo, um letreiro informa que Martírio foi produzido pela sociedade civil brasileira. O tema é a luta dos guaranis-caiovás pela retomada de suas terras. Carelli ouve os índios, vai a encontros de ruralistas, ao Congresso brasileiro.

Questão indígena. Documentário forte e emocionante expõe um quadro desolador ao longo de quase 3 horas de duração Foto: Vitrine Filmes

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O filme faz o que o jornalismo tem de fazer - dá a palavra a todo mundo, mas tem um partido e, em Brasília, Carelli deixou claro. “É a história do Brasil da perspectiva dos índios.” O filme vai à origem do imbróglio. Um texto antiquíssimo, da época do Império, que se refere às terras dos índios como ‘devolutas’. Tudo começou na Guerra do Paraguai e prossegue, até hoje, nessa outra guerra com o agronegócio, que não reconhece a legitimidade da luta dos guaranis-caiovás. Ruralistas falam em índios paraguaios, dizem que não pertencem às terras em litígio. Os caiovás fazem narrativas orais, mostram seus cemitérios. Carelli diz que fez Martírio para esclarecer o drama. Acrescenta que a oposição entre a sobrevivência dos índios e a manutenção do agronegócio, tão decisiva para a economia brasileira neste ano de safra recorde de grãos, é um falso problema. “Tem lugar para os índios e tem lugar para o agronegócio. Uma coisa não impede a outra. Os índios não estão pedindo nenhum absurdo.”

Carelli é duro. Aponta a responsabilidade do Estado brasileiro. “Foi o Estado que levou a essa expropriação das terras indígenas. Quem arrendou e depois loteou essas terras, quem se omitiu no reconhecimento, tudo isso quem fez foi o Estado, num processo que começou no Império e prossegue ao longo da história recente.” Em face do clima de beligerância, Carelli não vê outro jeito de virar o jogo - “O Estado brasileiro tem de pedir perdão aos índios. Tem de se declarar culpado, como fez o Canadá. Só isso permitiria desfazer o nó dos processos judiciais relacionados a essas disputas.” E Carelli clama - “Isso aqui não é a época dos bandeirantes, muito menos a Síria para que a gente tolere esses homicídios à bala em pleno século 21.” Mas não é isso que se desenha no horizonte. Sobram, no filme, críticas ao governo da ex-presidente Dilma Rousseff, mas isso não significa que as coisas tenham melhorado. “O ministro da Justiça de (Michel) Temer, Osmar Serraglio, faz parte da bancada ruralista. Então, não dá para ser otimista com relação a esse governo. O martírio vai continuar.”

O diretor não poupa nem o Supremo Tribunal Federal, a quem acusa de haver dado um golpe jurídico ao estabelecer, no julgamento da demarcação da reserva de Raposa/Serra do Sol, em 2009, o chamado marco temporal. “Isso significa que só terá direito a suas terras o índio que já estava nelas na promulgação da Constituição de 1988. É um erro gravíssimo, como se o Supremo estivesse zerando a história dos índios.” A luta continua. No Congresso, a senadora Kátia Abreu diz, com todas as palavras, que depois do MST e do Código Florestal, o adversário agora é a questão indígena, “que nós vamos derrotar”. Nas imagens de Martírio, os indiozinhos, numa cerimônia de iniciação, correm belos e felizes. Viram adultos destruídos pela dificuldade da sobrevivência. “Nós tínhamos a mata e os rios. Hoje, vivemos de cesta básica”, diz um deles. E não se pode esquecer da fala de Aristides Junqueira, quando era procurador-geral da República. Em visita a áreas sob disputa, ele diz que um boi nelore não pode valer mais que um índio, uma criança. Martírio é duro. Pode ser um martírio para quem quer ver Velozes e Furiosos 8, mas é importante como proposta para elucidação de um drama brasileiro dolorosamente real.