Em filme, ex-secretária de Hitler conta tudo

Eu Fui a Secretária de Hitler, que estréia hoje, traz o depoimento de Traudl Junge, que testemunhou o ocaso do 3.º Reich

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Por Agencia Estado
Atualização:

Do ponto de vista cinematográfico não há muita coisa a destacar. Uma câmera, a personagem falando, pouca variação ambiental, ângulo fixo. Mas o conteúdo é de estarrecer. Não se consegue tirar os olhos da tela e mal se respira com medo de perder alguma coisa de importante. O título é daqueles que não escondem nada: Eu Fui a Secretária de Hitler, que estréia hoje, é apenas isso: o depoimento de uma bela octogenária, de olhos límpidos, expressivos. Traudl Junge é seu nome. E ela conta a sua história, mantida em reserva durante 60 anos. Ela foi isso: a secretária particular do Füher, selecionada entre dezenas de candidatas. Trabalhou com Hitler, o acompanhava no escritório, nas cerimônias, nas reuniões, nos trens, e depois no bunker, em Berlim. Trocou confidências com Eva Braun, conheceu Goebbels e família, testemunhou enfim o ocaso do 3.º Reich. Traudl passou a integrar o círculo íntimo de Hitler e, como tal, fizera o pacto de suicídio. A morte de todos parecia inevitável à medida que o Exército Vermelho ia se aproximando de Berlim. No entanto, ela escapou, foi presa durante algum tempo, "desnazificada", e prosseguiu sua vida. Mas que vida poderia haver depois de uma experiência como aquela? A meditação de Traudl é sobre a culpa, e nem poderia ser de outra forma. A sua fala tem de ser ouvida, no sentido psicanalítico do termo, nesse sentido. São lembranças, umas ligadas às outras por uma memória privilegiada, mas no centro de tudo a pergunta insiste: "Será que aquela jovem de 22 anos, que fui eu naquele tempo, também é responsável pelas atrocidades do regime, pelos 6 milhões de judeus mortos?" O curioso (se o termo cabe) é que ela dirige esse discurso a um diretor, André Heller, cujos pais fugiram de Viena quando Hitler chegou ao poder. Heller, em parceria com Ohmar Schmiderer, editou cerca de dez horas de depoimento de Traudl e as transformou em compactos 90 minutos. Hora e meia de rigor bressoniano. Sem material de arquivo, sem uma foto sequer, sem música. Sempre a câmera mirando a personagem e, no máximo, e ocasionalmente, ela olhando no monitor partes já gravadas. Traudl diante de si mesma. Porque no fundo é isso. Como levar a rememoração implacável a um ponto em que devo julgar a mim mesmo? Digamos que o rigor da filmagem é contrapartida do rigor da personagem consigo mesma. Traudl, monologando, não aceita as desculpas fáceis. Ela ignorava, como se diz que todo o povo alemão ignorava, o que realmente acontecia. Mas se tivesse feito algum esforço não poderia saber alguma coisa? Alguém fez questão de saber algo além das declarações oficiais? Ou era melhor, mais cômodo, mais confortável não saber de nada? Veneno na cachorra - De qualquer forma, há um enredo macabro (mas fascinante) por trás daquelas palavras, que recordam, com detalhes, de como foi a preparação para a morte naquele bunker. Hitler experimenta o veneno em sua cachorra de estimação. Casa-se com Eva Braun antes do suicídio. As crianças são preparadas e se diz a elas que vão "tomar uma vacina". Há algo de revelador nessa morbidez, como há na constatação de que Hitler era uma figura paterna poderosa. Assustava as pessoas, mas ao mesmo tempo as apaziguava com seu poder. Os muito jovens, os muito pequenos, sentiam-se protegidos por ele e, até o último momento, havia esperança de uma reviravolta mágica. Nada disso serve de atenuante, e a própria Traudl assume sua culpa. "A minha juventude não é desculpa", diz ao final. E suas últimas palavras, últimas mesmo, antes de morrer, teriam sido estas: "Acho que só agora estou começando a me perdoar." Não estranha que com material de tamanha força os diretores tenham se despojado de tudo o mais. Qualquer acréscimo seria redundante.

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